Fedáo - Platáo
PLATÁO
FEDÃO
1 - Estiveste tu mesmo, Fedão, junto de Sócrates no dia em que ele tomou
veneno na prisão, ou ouviste de alguém?
Fedão - Não, eu mesmo, Equécrates.
Equécrates - Então, que disse o homem antes de morrer? E como foi a sua
morte? Gostaria de saber tudo o que se passou. Recentemente, nenhum cidadão
de Fliunte tem ido a Atenas, e há muito não nos vêm de lá forasteiros capazes de
dar-nos informações seguras, salvo dizerem que morreu depois de tomar o
veneno. Quanto ao mais, nada informam de particular.
Fedão - E também não ouviste contar como foi o julgamento?
Equécrates - Ouvimos, sim; alguém nos falou nisso. Surpreendeu- nos,
justamente, ter sido bem antes o julgamento e ele só vir a morrer muito depois.
Que aconteceu, Fedão?
Fedão - Foi tudo obra do acaso, Equécrates, o que se passou com ele.
Precisamente na véspera do julgamento coroaram a popa do navio que os
Atenienses enviam a Delo.
Equécrates - Que é isso?
Fedão - Segundo os Atenienses, é o navio em que outrora Teseu levou para
Creta as duas septenas de jovens, moços e moças, que ele salvou, salvando-se
também. Nessa ocasião, segundo contam, prometeram a Apolo enviar
anualmente uma deputação a Delo, no caso de se salvarem, e até hoje todos os
anos vão em romaria à divindade. Desde o início dos preparativos da viagem,
determina a lei que se proceda à purificação do burgo, não sendo permitido
executar ninguém por crime público antes de chegar a Delo o navio e retornar de
lá. Por vezes esse prazo fica muito dilatado, quando os ventos são adversos. O
início da peregrinação é contado a partir do momento em que o sacerdote de
Apolo coroa a popa do navio, o que se deu, conforme disse, na véspera do
julgamento. Esse o motivo de ter estado Sócrates tanto tempo na prisão, desde o
julgamento até à morte.
II - Equécrates - E as condições em que morreu, Fedão? Quais foram suas
palavras? Como se houve em tudo? Quais dos seus familiares se encontravam ao
seu lado? Ou as autoridades não permitiram que entrassem, vindo ele a morrer
privado de assistência dos amigos?
Fedão - De forma alguma; vários estiveram presentes; em grande número,
mesmo.
Equécrates - Então, procura contar-nos com a maior exatidão possível como
tudo se passou, no caso de dispores de folga.
Fedão - Disponho, sim, e vou tentar expor-vos o que se deu. Para mim, nada
é tão agradável como recordar- me de Sócrates, ou seja quando falo nele, ou
quando ouço alguém falar a seu respeito.
Equécrates - Pois podes ter a certeza, Fedão, de que teus ouvintes estão nessas
mesmas condições. Esforça-te, portanto, para contar o caso com todas as
minúcias.
Fedão - Era por demais estranho o que eu sentia junto dele. Não podia
lastimá-lo, como o faria perto de um ente querido no transe derradeiro. O
homem me parecia felicíssimo, Equécrates, tanto nos gestos como nas palavras,
reflexo exato da intrepidez e da nobreza com que se despedia da vida. Minha
impressão naquele instante foi que sua passagem para o Hades não se dava sem
disposição divina, e que, uma vez lá chegando, sentir-se-ia tão venturoso com os
que mais o foram. Por isso mesmo, não me dominou nenhum sentimento de
piedade, o que seria natural na presença de um moribundo. Também não me
sentia alegre, como costumava ficar em nossa práticas sobre filosofia. Sim,
porque toda nossa conversa girou em torno de temas filosóficos. Era um estado
difícil de definir, misto insólito de alegria e tristeza, por lembrar-me de que ele
iria morrer dentro de pouco. As mais pessoas presentes se encontravam em
condições quase idênticas, umas rindo, outras chorando, principalmente
Apolodoro. Conheces o homem e sabes como ele é.
Equécrates - Sem dúvida.
Fedão - Pois desse jeito se comportou o tempo todo. Eu também, fiquei muito
abalado, a mesma coisa passando-se com os outros.
Equécrates - E quem se achava lá, Fedão?
Fedão - Além do mencionado Apolodoro, seus conterrâneos Critobulo e o pai,
Hermógenes, Epígenes, Ésquines e Antístenes. Ctesipo de Peânia também esteve
presente, Menéxeno e mais alguns da mesma região. Se não me engano, Platão
se achava doente.
Equécrates - E havia também estrangeiros?
Fedão - Sim, os Tebanos Símias, Cebete e Fedondes; e de Mégara, Euclides e
Térpsio.
Equécrates - Nesse caso, Aristipo e Cleômbroto também estiveram com ele?
Fedão - Não; falaram que se encontravam em Egina.
Equécrates - Havia mais alguém?
Fedão - Creio que eram só esses.
Equécrates - E depois? Quais foram os discursos a que te referiste?
III - Fedão - Vou esforçar- me para contar tudo do começo. Tal como na
véspera, todos os dias visitávamos Sócrates, e desde a manhãzinha íamos
encontrar- nos no tribunal em que se deu o julgamento. Fica perto da cadeia. Ali
esperávamos conversando até que a cadeia abrisse, pois não costumam abri-la
muito cedo. Porém logo que isso se dava, corríamos para junto de Sócrates e
quase sempre passávamos com ele o dia todo. Nessa manhã reunimo-nos mais
cedo, porque na tarde anterior, ao nos retirarmos da prisão, soubemos que o
navio chegara de Delo. Por isso, combinamos encontrar- nos o mais cedo
possível no lugar habitual. Ao chegarmos, o porteiro que costumava receber-nos
veio ao nosso encontro para dizer que esperássemos fora e não entrássemos sem
que ele nos avisasse. Neste momento, nos disse, os Onze estão tirando os ferros
de Sócrates e lhe comunicam que hoje ele terá de morrer. Depois de algum
tempo, voltou para dizer que entrássemos. Ao penetrarmos no recinto,
encontramos Sócrates, que acabava de ser aliviado dos ferros, e Xantipa -
conhece-Ia decerto - com o filho pequeno, sentada junto do marido. Ao ver-nos,
começou Xantipa a lastimar-se e clamar como de hábito nas mulheres, dizendo:
Pela última vez, Sócrates, teus amigos conversarão contigo, e tu com eles.
Virando-se para Critão, Sócrates lhe disse: Critão, leva-a para casa. A isso, alguns
dos homens de Critão a retiraram, não cessando ela de gritar e debater-se.
Sócrates, de seu lado, sentado no catre, dobrou a perna sobre a coxa e começou a
friccioná-la duro com a mão, ao mesmo tempo que dizia: Como é extraordinário,
senhores, o que os homens denominam prazer, e como se associa
admiravelmente com o sofrimento, que passa, aliás, por ser o seu contrário. Não
gostam de ficar juntos no homem; mal alguém persegue e alcança um deles, de
regra é obrigado a apanhar o outro, como se ambos, com serem dois, estivessem
ligados pela cabeça. Quer parecer-me, continuou, que se Esopo houvesse feito
essa observação, não deixaria de compor uma fábula: Resolvendo Zeus pôr
termo as suas dissensões contínuas, e não o conseguindo, uniu- os pela
extremidade. Por isso, sempre que alguém alcança um deles, o outro lhe vem no
rastro. Meu caso é parecido: após o incômodo da perna causada pelos ferros,
segue-se-lhe o prazer.
IV - Nesta altura, falou Cebete: Por Zeus, Sócrates, disse, foi bom que mo
lembrasses. Diversas pessoas já me têm falado a respeito dos poemas que
escreveste, aproveitando as fábulas de Esopo, e do hino em louvor de Apolo.
Anteontem mesmo, o poeta Eveno me interpelou sobre a razão de compores
verso desde que te encontras aqui, o que antes nunca fizeras. Se te importa
deixar-me em condições de responder a Eveno quando ele voltar a falar- me a
esse respeito - e tenho certeza de que o fará - instrui- me sobre o que deverei
dizer-lhe.
Então dize-lhe a verdade, Cebete, replicou: que não me movia o desejo de
fazer-lhe concorrência nem aos seus poemas, quando compus os meus, o que,
aliás, tentativa para rastrear o significado de uns sonhos e cumprir, assim, minha
obrigação, no sentido de saber se era essa a modalidade de música que me
recomendavam com insistência. É o seguinte: Muitas e muitas vezes em minha
vida pregressa, sob formas diferentes me apareceu um sonho, porém dizendo
sempre a mesma coisa: Sócrates, me falava, compõe música e a executa. Até
agora eu estava convencido de ser justamente o que eu fizera a vida toda o que o
sonho me insinuava e concitava a fazer, à maneira de como costumamos
estimular os corredores: desse mesmo modo, o sonho me exortava a prosseguir
em minha prática habitual, a compor música, por ser a Filosofia a música mais
nobre e a ela eu dedicar-me. Agora, porém, depois do julgamento e por haver o
festival do deus adiado minha morte, perguntei a mim mesmo se a música que
com tanta insistência o sonho me mandava compor não seria essa espécie
popular, tendo concluído que o que importava não era desobedecer ao sonho,
porém fazer o que ele me ordenava. Seria mais seguro cumprir essa obrigação
antes de partir, e compor poemas em obediência ao sonho. Assim, comecei por
escrever um hino em louvor à divindade cuja festa então se celebrava. Depois da
divindade, considerando que quem quiser ser poeta de verdade terá de compor
mitos e não palavras, por saber- me incapaz de criar no domínio da mitologia,
recorri às fabulas de Esopo que eu sabia de cor e tinha mais à mão, havendo
versificado as que me ocorreram primeiro.
V - Isso, Cebete, é o que deverás dizer a Eveno. Apresenta-lhe, também,
saudações de minha parte, acrescentando que, se ele for sábio, deverá seguirme
quanto antes. Parto, ao que parece, hoje mesmo; assim os determinam os
Atenienses.
Símias exclamou: Que conselho, Sócrates, mandas dar a Eveno! Tenho
estado bastantes vezes com o homem, e por tudo o que sei dele, não terá grande
desejo de aceitar- te a indicação.
Como assim? Perguntou; Eveno não é filósofo?
Penso que é, retrucou Símias.
Nesse caso, terá de aceitá-la, tanto Eveno como quem quer que se aplique
dignamente a esse estudo. O que é preciso é não empregar violência contra si
próprio. Dizem que isso não é permitido.
Assim falando, sentou-se e apoiou no chão os pés, permanecendo nessa
posição, daí por diante, durante todo o tempo da conversa.
Nessa altura Cebete o interpelou: Por que disseste, Sócrates, que não é
permitido a ninguém empregar violência contra si próprio, se, ao mesmo tempo,
afirmas que o filósofo deseja ir após de quem morre?
Como, Cebete, nunca ouvistes nada a esse respeito, tu e Símias, quando
convivestes com Filolau?
Ouvi, Sócrates, porém muito pela rama.
Sobre isso eu também só posso falar de outiva; porém nada me impede de
comunicarvos o que sei. Talvez, mesmo, seja a quem se encontra no ponto de
imigrar para o outro mundo que compete investigar acerca dessa viagem e dizer
como será preciso imaginá-la. Que melhor coisa se poderá fazer para passar o
tempo até sol baixar?
VI - Qual o motivo, então, Sócrates, de dizerem que a ninguém é permitido
suicidar- se? De fato, sobre o que me perguntaste, ouvi Filolau afirmar, quando
esteve entre nós, e também outras pessoas, que não devemos fazer isso. Porém
nunca ouvi de ninguém maiores particularidades.
Então, o que importa é não desanimares, disse; é possível que ainda venhas a
ouvilas. Talvez te pareça estranho que entre todos os casos seja este o único
simples e que não comporte como os demais, decisões arbitrárias, segundo as
circunstãncias, a saber: que é melhor estar morto do que vivo. E havendo pessoas
para quem a morte, de fato, é preferível, não saberás dar a razão de ser vedado
aos homens procurarem para si mesmos semelhante benefício, mas precisarem
esperar por benfeitor estranho.
Itto Zeus, disses Cebete em seu dialeto, esboçando um sorriso: Deus o saberá.
Aparentemente, continuou Sócrates, isso carece de lógica; mas o fato é que
tem a sua razão de ser. Aquilo dos mistérios, de que nós, homens, nos
encontramos numa espécie de cárcere que nos é vedado abrir para escapar,
afigura- me de peso e anda fácil de entender. Uma coisa, pelo menos, Cebete,
me parece bem enunciada: que os deuses são nossos guardiães, e nós, homens,
propriedade deles. Aceitas esse ponto?
Perfeitamente, respondeu Cebete.
Tu também, continuou, na hipótese de algum dos teus escravos põr termo à
vida, sem que lhes houvesse dado a entender que estavas de acordo em que se
matasse, não te aborrecerias com ele, e se fosse possível, não o punirias?
Sem dúvida, respondeu.
Por conseguinte, não acho absurdo ninguém poder matar-se sem que a
divindade o coloque nessa contingência, como é o nosso caso agora.
VII - Essa parte, observou Cebete, também me parece razoável. Porém o
que afirmaste antes, sobre a disposição do filósofo para morrer, é um verdadeiro
contra-senso, Sócrates, se estiver certo o que dissemos há pouco, que Deus cuida
de nós e que somos propriedades dele. Que os indivíduos mais sábios se insurjam
contra semelhante tutela e procurem evitá-la, quando a exercem, precisamente,
os deuses, os melhores dirigentes, é o que não chego a compreender. Pois
ninguém ousará dizer que saberá cuidar melhor de si mesmo, uma vez em
liberdade. Um indivíduo insensato poderia raciocinar dessa maneira, por achar
bom fugir do amo, sem considerar que não se deve fugir do bem, mas ficar junto
dele o maior tempo possível. Foge por carecer de senso. 0 indivíduo inteligente,
pelo contrário, só deseja continuar junto de quem lhe seja superior. Por isso,
Sócrates, o certo é, precisamente, o oposto do que foi dito há pouco: aos sábios é
que fica bem insurgir-se contra a idéia da morte, e aos insensatos, exultar ante
essa perspectiva.
Ao ouvi-lo assim falar, quis parecer-me que Sócrates se alegrava com a
agudeza de Cebete; depois, voltando-se para nosso lado, falou: Cebete anda
sempre à cata de argumentos, sem aceitar de pronto a opinião dos outros.
Ao que Símias observou: Porém quer parecer-me, Sócrates, que há bastante
senso nas palavras de Cebete. Não se compreende, de fato, que indivíduos
verdadeiramente sábios fujam de amos melhores do que eles e se alegrem com
essa liberdade. A meu ver, o argumento de Cebete vai dirigido contra ti, por
aceitares à ligeira a idéia de deixar-nos, e também aos amos cuja superioridade
és o primeiro a proclamar.
Tens razão, observou. Pelo que vejo, sois de parecer que preciso defenderme
dessa acusação, como o fiz no tribunal.
Perfeitamente, respondeu Símias.
VIII - Pois que seja, disse. Vejamos se diante de vós outros minha defesa
saíra mais convincente do que a feita na frente dos juízes. O fato, Símias e
Cebete, prosseguiu, é que se eu não acreditasse, primeiro, que vou para junto de
outros deuses, sábios e bons, e, depois, para o lugar de homens falecidos muito
melhores do que os daqui, cometeria uma grande erro por não me insurgir contra
a morte. Porém podes fiar que espero juntar-me a homens de bem. Sobre esse
ponto não me manifesto com muita segurança; mas no que entende com minha
transferência para junto de deuses que são excelentes amos: se há o que eu
defenda com convicção é precisamente isso. Esse motivo de não me revoltar a
idéia da morte. Pelo contrário, tenho esperança de que alguma coisa há para os
mortos, e, de acordo com antiga tradição, muito melhor para os bons do que para
os maus.
Como assim, Sócrates, perguntou Símias; com semelhante convicção queres
deixarnos sem no-la dar a conhecer? Eu, pelo menos, acho que se trata de algo
de grande relevância para nós todos. Ao mesmo tempo, com isso farás a tu a
defesa, se com o que disseres conseguires convencer-nos.
É o que vou tentar, continuou; porém primeiro vejamos o que o nosso Critão
há tanto tempo quer dizer-me.
Trata-se apenas do seguinte, Sócrates, falou Critão: é que há muito vem
insistido comigo a pessoa encarregada de dar-te o veneno, para avisar-te de que
deves conversar o menos possível. Conversa muito animada esquenta, é o que ele
afirma, e isso prejudica a ação da droga. Do contrário, já tem acontecido
precisar tomar duas ou três doses quem se comporta desse jeito.
É Sócrates: Manda-o passear! disse. E que prepare dose dupla, e até tripla, se
for preciso.
Eu já sabia mais ou menos o que irias responder, observou Critão; mas o
homem não me dava sossego.
Deixa- o, disse. E agora, juízes, pretendo expor-vos as razões de estar
convencido de que o indivíduo que se dedicou a vida inteira à Filosofia, terá de
mostrar-se confiante na hora da morte, pela esperança de vir a participar, depois
de morto, dos mais valiosos bens. Como poderá ser dessa maneira, Símias e
Cebete, é o que tentarei explicar-vos.
IX - Embora os homens não o percebam, é possível que todos os que se
dedicam verdadeiramente à Filosofia, a nada mais aspirem do que a morrer e
estarem mortos. Sendo isso um fato, seria absurdo, não fazendo outra coisa o
filósofo toda a vida, ao chegar esse momento, insurgir-se contra o que ele
mesmo pedira com tal empenho e em pós do que sempre se afanara.
Símias, então, rindo, Por Zeus, Sócrates, interrompeu-o; fizeste-me rir, em
que pese à minha falta de disposição para isso. O que penso é que, se os homens
te ouvissem discorrer dessa maneira, achariam certo o que se diz dos filósofos - e
nesse ponto contariam com a aprovação de nossa gente - que em verdade eles
vivem a morrer, sabendo perfeitamente que outra coisa não merecem.
E só diriam a verdade, Símias, como exceção do que se refere a estarem
cientes desse ponto, pois, de fato, não sabem de que modo o verdadeiro filósofo
deseja a morte, nem como pode vir a alcançá-la. Porém deixemos essa gente de
lado e perguntemos a nós mesmos se acreditamos que a morte seja alguma
coisa?
Sem dúvida, respondeu Símias.
Que não será senão a separação entre a alma e o corpo? Morrer, então,
consistirá em apartar-se da alma o corpo, ficando este reduzido a si mesmo e,
por outro lado, em libertar- se do corpo a alma e isolar-se em si mesma? Ou será
a morte outra coisa?
Não; é isso, precisamente, respondeu.
Considera agora, meu caro, se pensas como eu. Estou certo de que desse
modo ficaremos conhecendo melhor o que nos propomos investigar. És de
opinião que seja próprio do filósofo esforçar-se para a aquisição dos pretensos
prazeres, tal como comer e beber?
De forma alguma, Sócrates, replicou Símias.
E como relação aos prazeres do amor?
A mesma coisa.
E os demais prazeres, que entendem com os cuidados do corpo? És de
parecer que lhes atribua algum valor? A posse de roupas vistosas, ou de calçados
e toda a sorte de ornamentos do corpo, que tal achas? Eles os aprecia ou os
despreza no que não for de estrita necessidade?
Eu, pelo menos, respondeu, sou de parecer que o verdadeiro filósofo os
despreza.
Sendo assim, continuou, não achas que, de modo geral, as preocupações
dessa pessoa, não visam ao corpo, porém tendem, na medida do possível, a
afastar-se dele para aproximar-se da alma?
É também o que eu penso.
Nisto, por conseguinte, antes de mais nada, é que o filósofo se diferencia dos
demais homens: no empenho de retirar quanto possível a alma na companhia do
corpo.
Evidentemente.
Essa é a razão, Símias, de, na opinião da maioria dos homens, não merecer
viver o indivíduo a quem nada disso é agradável e que não se importa com tais
práticas, por achar- se muito mais perto da condição de morto e por não dar a
menor importãncia aos prazeres alcançados por intermédio do corpo.
Tens razão.
X - E como referência à aquisição do conhecimento? O corpo constitui ou
não constitui obstáculo, quando chamado para participar da pesquisa? O que digo
é o seguinte: a vista e o ouvido asseguram aos homens alguma verdade? Ou será
certo o que os poetas não se cansam de afirmar, que nada vemos nem ouvimos
com exatidão? Ora, se esses dois sentidos corpóreos não são nem exatos nem de
confiança, que diremos dos demais, em tudo inferiores aos primeiros? Não
pensas desse modo?
Perfeitamente, respondeu.
Então, perguntou, quando é que a alma atinge a verdade? É fora de dúvida
que, desde o momento em que tenta investigar algo na companhia do corpo, vê
se lograda por ele.
Tens razão.
E não é no pensamento - se tiver de ser de algum modo - que algo da
realidade se lhe patenteia?
Perfeitamente.
Ora, a alma pensa melhor quando não tem nada disso a perturbá-la, nem a
vista nem o ouvido, nem dor nem prazer de espécie alguma, e concentrada ao
máximo em si mesma, dispensa a companhia do corpo, evitando tanto quanto
possível qualquer comércio com ele, e esforça-se por apreender a verdade.
Certo.
E não é nesse estado que a alma do filósofo despreza o corpo e dele foge,
trabalhando por concentrar-se em si própria?
Evidentemente.
E com relação ao seguinte, Símias: afirmaremos ou não que o justo em si
mesmo seja alguma coisa?
Afirmaremos, sem dúvida, por Zeus.
E também o belo em si e o bem?
Também.
E algum dia já percebeste com os olhos qualquer deles?
Nunca, respondeu.
Ou por intermédio de outro sentido corpóreo? Refiro-me a tudo: grandeza,
saúde, força e o mais que for, numa palavra: à essência de tudo o que existe,
conforme a natureza de cada coisa. É por intermédio do corpo que percebemos o
que neles há de verdadeiro, ou tudo se passará da seguinte maneira: quem de nós
ficar em melhores condições de pensar em si mesmo o mais exatamente
possível o que se propõe examinar, não é esse que estará mais perto do
conhecimento de cada coisa? Ou não?
Perfeitamente.
E não alcançará semelhante objetivo da maneira mais pura quem se
aproximar de cada coisa só com o pensamento, sem arrastar para a reflexão a
vista ou qualquer outro sentido, nem associá-los a seu raciocínio, porém valendose
do pensamento puro, esforçarse por apreender a realidade de cada coisa em
sua maior pureza, apartado, quanto possível, da vista e do ouvido, e, por assim
dizer, de todo o corpo, por ser o corpo fator de perturbação para a alma e
impedi-la de alcançar a verdade e o pensamento, sempre que a ele se associa?
Não será, Símias, esse indivíduo, se houver alguém em tais condições, que
alcançara o conhecimento do Ser?
Tens toda a razão, Sócrates, respondeu Símias.
XI - Por tudo isso, continuou, é natural nascer no espírito dos filósofos
autênticos certa convicção que os leva a discorrer entre eles mais ou menos nos
seguintes termos: Há de haver para nós outros algum atalho direto, quando o
raciocínio nos acompanha na pesquisa; porque enquanto tivermos corpo e nossa
alma se encontrar atolada em sua corrupção, jamais poderemos alcançar o que
almejamos. E o que queremos, declaremo-lo de uma vez por todas, é a verdade.
Não têm conta os embaraços que o corpo nos apresta, pela necessidade de
alimentar-se, sem falarmos nas doenças intercorrentes, que são outros
empecilhos na caça da verdade. Com amores, receios, cupidez, imaginações de
toda a espécie e um sem número de banalidades, a tal ponto ele nos satura, que,
de fato, como se diz, por sua causa jamais conseguiremos alcançar o
conhecimento do quer que seja. Mais, ainda: guerras, batalhas, dissensões,
suscita-as exclusivamente o corpo com seus apetites. Outra causa não têm as
guerras senão o amor do dinheiro e dos bens que nos vemos forçados a adquirir
por causa do corpo, visto sermos obrigados a servi-lo. Se carecermos de vagar
para nos dedicarmos à Filosofia, a causa é tudo isso que enumeramos. O pior é
que, mal conseguimos alguma trégua e nos dispomos a refletir sobre
determinado ponto, na mesma hora o corpo intervém para perturbar-nos de mil
modos, causando tumulto e inquietude em nossa investigação, até deixar-nos
inteiramente incapazes de perceber a verdade. Por outro lado, ensina-nos a
experiência que, se quisermos alcançar o conhecimento puro de alguma coisa,
teremos de separar-nos do corpo e considerar apenas com a alma como as
coisas são em si mesmas. Só nessas condições, ao que parece, é que
alcançaremos o que desejamos e do que nos declaramos amorosos, a sabedoria,
isto é, depois de mortos, conforme nosso argumento o indica, nunca enquanto
vivermos. Ora, se realmente, na companhia do corpo não é possível obter o
conhecimento puro do que quer que seja, de duas uma terá de ser: ou jamais
conseguiremos adquirir esse conhecimento, ou só o faremos depois de mortos,
pois só então a alma se recolherá em si mesma, separada do corpo, nunca antes
disso. Ao que parece, enquanto vivermos, a única maneira de ficarmos mais
perto do pensamento, é abstermo-nos o mais possível da companhia do corpo e
de qualquer comunicação com ele, salvo e estritamente necessário, sem nos
deixarmos saturar de sua natureza sem permitir que nos macule, até que a
divindade nos venha libertar. Puros, assim, e livres da insanidade do corpo, com
toda a probalidade nos uniremos a seres iguais a nós e reconheceremos por nós
mesmos o que for estreme de impurezas. É nisso, provavelmente, que consiste a
verdade. Não é permitido ao impuro entrar em contato com o puro. - Eis aí, meu
caro Símias, quero crer, o que necessariamente pensam entre si e conversam uns
com os outros os verdadeiros amantes da sabedoria. Não é esse, também, o teu
modo de pensar?
Perfeitamente, Sócrates.
XII - Por conseguinte, companheiro, continuou Sócrates, se tudo isso estiver
certo, há muita esperança de que somente no ponto em que me encontro, e mais
em tempo algum, é que alguém poderá alcançar o que durante a vida constitui
nosso único objetivo. Por isso, a viagem que me foi agora imposta deve ser
iniciada com uma boa esperança, o que se dará também com quantos tiverem
certeza de achar-se com a mente preparada e, de algum modo, pura.
Isso mesmo, observou Símias.
E purificação não vem a ser, precisamente, o que dissemos antes: separar do
corpo, quanto possível, a alma, e habituá-la a concentrar-se e a recolher-se a si
mesma, a afastar-se de todas as partes do corpo e a viver, agora e no futuro,
isolada quanto possível e por si mesma, e como que libertada dos grilhões do
corpo?
É muito certo, respondeu.
E o que denominamos morte, não será a liberação da alma e seu
apartamento do corpo?
Sem dúvida, tornou a falar.
E essa separação, como dissemos, os que mais se esforçam por alcançá-la e
os únicos a consegui-la não são os que se dedicam verdadeiramente à Filosofia, e
não consiste toda a atividade dos filósofos na libertação da alma e na sua
separação do corpo?
Exato.
Sendo assim, como disse no começo, não seria ridículo preparar-se alguém a
vida inteira para viver o mais perto possível da morte, e revoltar-se no instante
em que ela chega?
Ridículo, como não?
Logo, Símias, continuou, os que praticam verdadeiramente a Filosofia, de fato
se preparam para morrer, sendo eles, de todos os homens, os que menos temor
revelam à idéia da morte. Basta considerarmos o seguinte: se de todo o jeito eles
desprezam o corpo e desejam, acima de tudo, ficar sós com a alma, não seria o
cúmulo do absurdo mostrar medo e revoltar-se no instante em que isso
acontecesse, em vez de partirem contentes para onde esperam alcançar o que a
vida inteira tanto amara - sim, pois eram justamente isso: amantes da sabedoria -
e ficar livres para sempre da companhia dos que os molestavam? Como!
Amores humanos, ante a perda de amigos, esposas e filhos, têm levado tanta
gente a baixar voluntariamente, ao Hades, movidos apenas da esperança de lá
reverem o objeto de seus anelos e de com eles conviverem; no entanto, quem
ama de verdade a sabedoria, e mais: está firmemente convencido de que em
parte alguma poder encontrá-la a não ser no Hades, haverá de insurgir-se contra
a morte, em vez de partir contente para lá? Sim, é o que teremos de admitir, meu
caro, se se tratar de um verdadeiro amante da sabedoria. Pois este há de estar
firmemente convencido de que a não ser lá, em parte alguma poderá encontrar a
verdade em toda a sua pureza. Se as coisas se passam realmente como acabo de
dizer, não seria dar prova de insensatez temer a morte semelhante indivíduo?
Sem dúvida, por Zeus, foi a sua resposta.
XIII - Por consequência, continuou, ao vires um homem revoltar-se no
instante de morrer, não será isso prova suficiente de que não trata de um amante
da sabedoria, porém amante do corpo? Um indivíduo nessas condições, também
será, possivelmente, amante do dinheiro ou da fama, se não o for de ambos ao
mesmo tempo.
É exatamente como dizes, respondeu.
E a virtude denominada coragem, Símias, prosseguiu, não assenta
maravilhosamente bem nos indivíduos com essa disposição?
Sem dúvida, respondeu.
E a temperança, o que todo o mundo chama temperança: não deixar-se
dominar pelos apetites, porém desprezá-los e revelar moderação, não será
qualidade apenas das pessoas que em grau eminentíssimo desdenham do corpo e
vivem para a Filosofia?
Necessariamente, foi a resposta.
Se considerares, prosseguiu, nos outros homens a coragem e a temperança,
hás de achá-las mais do que absurdas.
Como assim, Sócrates?
Ignoras porventura, lhe disse, que na opinião de toda a gente a morte se inclui
entre os denominados males?
Sei disso, respondeu.
E não é pelo medo de um mal ainda maior que enfrentam a morte esses
indivíduos corajosos, quando a enfrentam.
Certo.
Logo, é por medo e temor que os homens são corajosos, com exceção dos
filósofos, muito embora se nos afigure paradoxal ser alguém corajoso por temor
e pusilanimidade.
Perfeitamente.
E com os moderados desse tipo, não se passará a mesma coisa, isto é, serem
moderados por algum desregramento? E conquanto asseveremos não ser isso
possível, é o que se dá, realmente, com a temperança balofa dessa gente. De
medo, apenas, de se privarem de certos prazeres por eles cobiçados, quando se
abstêm de alguns é porque outros o dominam. E embora chamem intemperança
o ser vencido pelos prazeres, o que se dá com todos é que o domínio sobre alguns
prazeres se faz à custa de servirem a outros, o que vem a ser muito parecido com
o que há pouco declarei, de ser, de algum modo, a intemperança que os deixa
temperantes.
Parece que é assim mesmo.
Mas, meu bem aventurado Símias, essa não é a maneira de alcançar a
virtude, trocar uns prazeres por outros, tristezas, ou temores por temores de outras
espécie, como trocamos em miúdos moeda de maior valor. Só há uma moeda
verdadeira, pela qual tudo isso deva ser trocado: a sabedoria. E só por troca com
ela, ou com ela mesma, é que em verdade se compra ou se vende tudo isto:
coragem, temperança e justiça, numa palavra, a verdadeira virtude, a par da
sabedoria, pouco importando que se lhe associem ou dela se afastem prazeres ou
temores e tudo o mais da mesma natureza. Separadas da sabedoria e permutadas
entre si, todas elas não são mais do que sombra de virtude, servis em toda a linha
e sem nada possuírem de verdadeiro nem são. A verdade em si consiste,
precisamente, na purificação de tudo isso, não passando a temperança, a justiça,
a coragem e a própria sabedoria de uma espécie de purificação. É muito
provável que os instituidores de nossos mistérios não fossem falhos de
merecimento e que desde muitos nos quisessem dar a entender por meio de sua
linguagem obscura que a pessoa não iniciada nem purificada, ao chegar ao
Hades vai para um lamaçal, ao passo que o iniciado e puro, ao chegar lá passa a
morar com os deuses. Porque, como dizem os que tratam dos mistérios: muitos
são os portadores de tirso, porém pouquíssimos os verdadeiros inspirados. E no
meu modo de entender, são estes, apenas, os que se ocuparam com a filosofia,
em sua verdadeira acepção, no número dos quais procurei incluir-me,
esforçando-me nesse sentido, por todos os modos, a vida inteira e na medida do
possível sem nada negligenciar. Se trabalhei como seria preciso e tirei disso
algum proveito, é o que com segurança ficaremos sabendo no instante de lá
chegarmos, se Deus quiser, e dentro de pouco tempo, segundo creio. Eis aí,
Símias e Cebete, minha defesa, a razão de apartar-me nem revoltar-me, por
estar convencido de que tanto lá como aqui encontrarei companheiros e mestres
excelentes. O vulgo não me dará crédito; porém se a minha defesa vos pareceu
mais convincente do que aos meus juízes atenienses, é tudo o que posso desejar.
XIV - Depois de haver Sócrates assim falado Cebete tomou a palavra e disse:
Sócrates, tudo o que à alma, dificilmente os homens poderão acreditar que, uma
vez separada do corpo, venha ela a subsistir em alguma parte, por destruir-se e
desaparecer no mesmo dia em que o homem fenece. No próprio instante em que
ele sai do corpo e dele sai, dispersa-se como sopro ou fumaça, evola-se,
deixando, em conseqüência de existir em qualquer parte. Porque, se ela se
recolhesse algures a si mesma, livre dos males que há pouco enumeraste,
haveria grande e doce esperança de ser verdade, Sócrates, tudo o que disseste.
Mas o fato é que se faz mister de não pequeno poder de persuasão e de muitos
argumentos para demonstrar que a alma subsista depois da morte do homem e
que conserva alguma atividade e pensamento.
Tens razão, Cebete, respondeu Sócrates. Mas que podemos fazer? Não queres
examinar mais de espaço essa questão, para ver se as coisas, realmente, se
passam desse modo?
Eu, pelo menos, respondeu Cebete, ouvirei de muito bom grado o que disseres
a esse respeito.
Estou certo de que desta vez, continuou Sócrates, quem nos ouvir, mas que
seja algum comediógrafo, não poderá dizer que só digo baboseiras e nunca me
ocupo com coisa de interesse. Se estiveres de acordo, investigaremos esse ponto.
XV- Estudemo-lo, pois, sob o seguinte aspecto: se as almas dos mortos se
encontram ou não se encontram no Hades? Conforme antiga tradição, que ora
me ocorre, as almas lá existentes foram daqui mesmo e para cá deverão voltar,
renascendo os mortos. A ser assim, e se os vivos nascem dos mortos, não terão
de estar lá mesmo nossas almas? Pois não poderiam renascer se não existissem,
vindo a ser essa, justamente a prova decisiva, no caso de ser possível deixar
manifesto que os vivos de outra parte não procedem senão dos mortos. Se isso
não for verdade, teremos de procurar outro argumento.
Isso mesmo, disse Cebete.
Para deixar a questão mais fácil de entender, observou, não te limites a
considerá-la com relação aos homens, porém estende-a ao conjunto dos animais
e das plantas, numa palavra, a tudo o que nasce, a fim de vermos se cada coisa
não se origina exclusivamente do seu contrário, onde quer que se verifique essa
relação, tal como no caso do belo, que tem como contrário o feio, no do justo e
do injusto e em mil outro exemplos que se poderiam enumerar. Investiguemos,
então, se é forçoso que tudo o que tenha algum contrário de nada mais possa
originar-se a não ser desse mesmo contrário. Por exemplo: para ficar grande
alguma coisa, é preciso que antes fosse pequena, sem o que não poderia
aumentar.
Certo.
E para diminuir, não é preciso ser maior, para depois vir a ficar pequena?
Exatamente, respondeu.
Assim, do mais forte nasce o mais fraco e do moroso, o rápido.
Sem dúvida.
E então? Se alguma coisa piora, é porque antes era melhor, como terá sido
antes injusta para poder tornar-se justa?
Como não?
E agora? Não é próprio dessa oposição universal haver dois processos de
nascimento: o que vai de um contrário para o outro, e o de sentido inverso: deste
último para aquele? Entre a coisa maior e a menor há crescimento e diminuição,
razão por que dizemos que uma delas cresce e a outra diminui.
É certo, respondeu.
Vale o mesmo para a combinação e a decomposição, o resfriamento e o
aquecimento, e para as demais oposições do mesmo tipo. E embora nem sempre
tenhamos para todas elas designação apropriada, é forçoso nesses casos ser
idêntico o processo, de forma que cada coisa cresce à custa de outra, sendo
recíproca a geração entre elas.
Sem dúvida, observou.
XVI - E então? Prosseguiu: viver não comporta um contrário, tal como se dá
com a vigília e o sono?
Perfeitamente, respondeu.
Qual é?
Estar morto, foi a resposta.
Sendo assim, cada um desses estados provém do outro, visto serem
contrários, havendo entre ambos um processo recíproco de geração.
Como não?
Vou falar de um dos pares de contrários a que me referi há pouco, disse
Sócrates, e de suas respectivas gerações; tu te manifestarás a respeito do outro.
Denomino o primeiro, vigília e sono; da vigília nasce o sono, e vice-versa: do
sono, a vigília, tendo um dos processos o nome de acordar e o outro o de dormir.
Isso te basta, perguntou, ou não?
Perfeitamente.
É tua agora a vez, prosseguiu, de falar a respeito da vida e da morte. Não
disseste que estar vivo é o contrário de estar morto.
Disse.
E que um é gerado do outro?
Também.
Que é, então, o que provém do vivo?
O morto, respondeu.
E do morto, voltou a falar, o que se origina?
Será forçoso convir que é o vivo.
Sendo assim, Cebete, do que está morto provêm os homens e tudo o que tem
vida?
É evidente, respondeu.
Logo, continuou, nossas almas estão no Hades.
Parece que sim.
E desses dois processos correlativos, um não nos é manifesto? Pois o ato de
morrer é bem visível, não é isso mesmo?
Sem dúvida, respondeu.
Que faremos, então? Continuou; não atribuiremos a esse processo de geração
o seu contrário, ou admitiremos que nesse ponto a natureza é manca? Não será
preciso aceitarmos um processo gerador oposto ao de morrer?
Sem dúvida nenhuma, respondeu.
Qual?
Reviver.
Logo, continuou, se o reviver é um fato, terá de ser uma geração no sentido
dos mortos para os vivos: a revivescência.
Perfeitamente.
Desse modo, ficamos também de acordo que tanto os vivos provêm dos
mortos como os mortos dos vivos. Sendo assim, quer parecerme que
apresentamos um argumento bastante forte para afirmar que as almas dos
mortos terão necessariamente de estar em alguma parte, de onde voltam a viver.
A meu parecer, Sócrates, replicou, é a conclusão forçosa de tudo o que
admitimos até aqui.
XVII - Observa também, Cebete, continuou, que não chegamos a esse
acordo aereamente, segundo me parece. Porque se um desses processos não
fosse compensado pelo seu contrário, girando, por assim dizer, em círculo, mas
sempre se fizesse a geração em linha reta, de um dos contrários para o seu
oposto, sem nunca voltar desta para aquele, nem andar em sentido inverso: fica
sabendo que tudo acabaria numa forma única e ficaria num só estado, cessando,
por isso mesmo, a geração.
Como assim? Perguntou.
Não é difícil, continuou, compreender o sentido de minhas palavras. No caso,
por exemplo, de existir o sono, porém sem haver o correspondente despertar do
que estiver dormindo, bem sabes que acabaria por transformar em banalidade a
fábula de Eudimião, a qual não seria percebida em parte alguma, porque tudo o
mais ficaria como ele, num sono universal. E se todas as coisas se misturassem,
sem virem a separar-se, dentro de pouco tempo seria um fato aquilo de
Anaxógaras: a confusão geral. A mesma coisa se daria, amigo Cebete, se viesse
a perecer quanto participa da vida, e, depois de morto, se conservasse sempre no
mesmo estado, sem nunca renascer; não seria inevitável vir tudo a ficar morto e
nada mais viver? Se o que é vivo provém de algo diferente da morte e acaba por
morrer: como evitar que tudo acabe por desaparecer na morte?
Não há meio, Sócrates, respondeu Cebete, segundo penso; quer parecer-me
que te assiste toda a razão.
A mim também, Cebete, continuou, se me afigura muito certo, não havendo
possibilidade de engano da nossa parte, pois ficamos de acordo nesse ponto. Sim,
o reviver é um fato, os vivos provêm dos mortos, as almas dos mortos existem,
sendo melhor a sorte das boas e pior a das más.
XVIII - É também, Sócrates, voltou Cebete a falar, o que se conclui daquele
outro argumento - se for verdadeiro - que costumas apresentar, sobre ser
reminiscência o conhecimento, conforme o qual nós devemos forçosamente ter
aprendido num tempo anterior o de que nos recordamos agora, o que seria
impossível, se nossa alma não preexistisse algures, antes de assumir a forma
humana. Isso vem provar que a alma deve ser algo imortal
Porém Cebete, interrompeu-o Símias, que provas há sobre isso? Aviva-me a
memória, pois não me lembro agora quais sejam.
Bastará uma, respondeu Cebete, eloquentíssima: interrogando os homens, se
as perguntas forem bem conduzidas, eles darão por si mesmos respostas
acertadas, o de que não seriam capazes se já não possuíssem o conhecimento e a
razão reta. Depois disso, se os pusermos diante de figuras geométricas ou coisas
do mesmo gênero, ficará demonstrado a saciedade que tudo realmente se passa
desse modo.
Se isso não basta, Símias, interveio Sócrates, para convencer-te, vê se
considerando a questão por outro prisma, chegarás a concordar conosco. Duvidas
que seja apenas recordar o que denominamos aprender?
Não direi que duvide, respondeu Símias. O que eu quero é justamente isso
sobre discutimos: recordar-me. Com a exposição de Cebete cheguei quase a
relembrar- me e convencer-me. Não obstante, gostaria de saber como vais
desenvolver o tema.
Eu? Deste modo, replicou. Num ponto estamos de acordo: que para recordarse
alguém de alguma coisa, é preciso ter tido antes o conhecimento dessa coisa.
Perfeitamente, respondeu.
E não poderemos declarar-nos também de acordo a respeito de mais outro
ponto, que o conhecimento alcançado em certas condições tem o nome de
reminiscência? Refiro-me ao seguinte: quando alguém vê ou ouve alguma coisa,
ou a percebe de outra maneira, e não apenas adquire o conhecimento dessa coisa
como lhe ocorre a idéia de outra que não é objeto do mesmo conhecimento,
porém de outro, não teremos o direito de dizer que essa pessoa se recordou do
que lhe veio ao pensamento?
Como assim?
É o seguinte: uma coisa é conhecimento do homem, e outra o da lira.
Sem dúvida.
E não sabes o que se passa com os amantes, quando vêem a lira, a roupa, ou
qualquer outro objeto de uso de seus amados? Reconhecem a lira e formam no
espírito a imagem do mancebo a quem a lira pertence. Reminiscência é isso: ver
alguém freqüentemente a Símias e recordar-se de Cebete. Há mil outros
exemplos do mesmo tipo.
Milhares, por Zeus, respondeu Símias.
Não constitui isso, perguntou, uma espécie de reminiscência? Principalmente
quando se dá com relação a coisa de que poderíamos estar esquecidos, pela ação
do tempo ou por falta de atenção.
Perfeitamente, respondeu.
E então? Continuou: não é possível lembrar-se alguém de um homem, ao ver
a pintura de um cavalo ou de uma lira, ou então, ao ver o retrato de Símias,
recordar-se de Cebete?
Muito possível.
E diante do retrato de Símias, lembrar-se do próprio Símias?
Isso também, foi a resposta.
XIX - E não é certo que em todos esses casos a reminiscência tanto provém
dos semelhantes como dos dessemelhantes?
Provém, de fato.
E no caso de lembrar-se alguém de alguma coisa à vista de seu semelhante,
não será forçosos perceber essa pessoa se a semelhança é perfeita ou se
apresenta alguma falha?
Forçosamente, respondeu.
Considera, então, se tudo não se passa deste modo. Afirmamos que há
alguma coisa a que damos o nome de igual; não imagino a hipótese de que um
pedaço de pau ser igual a outro, nem uma pedra a outra pedra, nem nada
semelhante; refiro-me ao que se acha acima de tudo isso; a igualdade em si.
Diremos que existe ou que não existe?
Existe, por Zeus, exclamou Símias; à maravilha.
E que também saberemos o que seja?
Sem dúvida, respondeu.
E onde formos buscar esse conhecimento? Não foi naquilo a que nos
referimos há pouco, à vista de um pau ou de uma pedra e de outras coisas iguais,
que nos surgiu a idéia de igualdade, que difere delas? Ou não te parece diferir?
Considera também o seguinte: por vezes, a mesma pedra ou o mesmo lenho, sem
se modificarem, não te afiguram ora iguais, ora desiguais?
Sem dúvida.
E então? O igual já se te apresentou alguma vez como desigual, e a igualdade
como desigualdade?
Nunca, Sócrates.
Por conseguinte, continuou, não são a mesma coisa esses objeto iguais e a
igualdade em si.
De jeito nenhum, Sócrates.
Não obstante, disse, foi desses iguais, diferentes da igualdade, que concebeste
e adquiriste o conhecimento desta última.
Está muito certo o que afirmaste, disse.
Que pode ser semelhante àqueles ou dessemelhantes?
Perfeitamente.
Isso, aliás, continuou, é indiferente. Desde que, à vista de um objeto, pensas
em outro, seja ou não seja semelhante ao primeiro, necessariamente o que se dá
nesse caso é reminiscência.
Perfeitamente.
E então? Prosseguiu: que se passa conosco, com relação aos pedaços de pau
iguais e a tudo o mais a que nos referimos há pouco? Afiguram-se-nos iguais à
igualdade em si, ou lhes falta alguma coisa para serem como a igualdade? Ou
não falta nada?
Falta muito, respondeu.
Estamos, por conseguinte, de acordo, que quando alguém vê um determinado
objeto e diz: O objeto que tenho neste momento diante dos olhos aspira a ser
como outro objeto real, porém fica muito aquém dele, sem conseguir alcançá-lo,
visto lhe ser inferior: essa pessoa, dizia, ao fazer semelhante observação, tinha
necessariamente o conhecimento do objeto com o qual ela disse que o outro se
assemelhava, porém era inferior.
Forçosamente. E então? Não se passará a mesma coisa conosco, em relação
às coisas iguais e à igualdade em si mesma?
Sem dúvida nenhuma.
É preciso, portanto, que tenhamos conhecido a igualdade antes do tempo em
que, vendo pela primeira vez objetos iguais, observamos que todos eles se
esforçavam por alcançá-Ia porém lhe eram inferiores.
Certo.
Como também nos declaramos de acordo em que não poderíamos fazer
semelhante observação nem ficar em condições de fazê-la, a não ser por meio
da vista ou do tato, ou de qualquer outro sentido. Não estabeleço diferenças.
De fato, Sócrates, são equivalentes; pelo menos no que respeita ao tema em
discussão.
De qualquer forma, é por meio dos sentidos que observamos tenderem para a
igualdade em si todas as coisas percebidas como iguais, porém sem jamais
alcançá-la. Ou que diremos?
Isso mesmo.
Logo, antes de começarmos a ver, a ouvir, ou a empregar os demais sentidos,
já devemos ter adquirido em alguma parte o conhecimento do que seja a
igualdade em si, para ficarmos em condições de relacionar com ela as
igualdades que os sentidos nos dão a conhecer e afirmar que estas se esforçam
por alcançá-la, porém lhe são inferiores.
É a consequência necessária, Sócrates, do que foi dito antes.
E não é certo que vemos e ouvimos e fazemos uso dos demais sentidos logo
após o nascimento?
Perfeitamente.
Será preciso, então, é o que afirmamos, já termos antes disso o conhecimento
da igualdade.
Certo.
Antes do nascimento, por conseguinte, ao que parece, é que necessariamente
o adquirimos.
Parece, mesmo.
XX - Logo, se o adquirimos antes do nascimento e nascemos com ele, é
porque conhecemos antes do nascimento e ao nascer tanto o igual, o maior e o
menor, como as demais noções da mesma natureza. Pois tanto é válido nosso
argumento para a igualdade como para o belo em si mesmo e o bem em si
mesmo, a justiça, a piedade e tudo o mais, como disse, a que pusemos a marca
de O próprio que é, assim nas perguntas que formulamos como nas respostas
apresentadas. A esse modo, adquirimos necessariamente antes de nascer o
conhecimento de tudo isso.
Certo.
E se, depois de adquirido tal conhecimento não o esquecêssemos, desde o
nascimento o possuiríamos e o conservaríamos toda a vida. Pois conhecer, de
fato, consiste apenas no seguinte: conservar o conhecimento adquirido, sem vir
nunca a perdê-lo. 0 que denominamos esquecer, Símias, não será precisamente a
perda do conhecimento?
Não será outra coisa, Sócrates, respondeu.
Se, em verdade, segundo penso, antes de nascer já tínhamos tal
conhecimento e o perdemos ao nascer, e depois, aplicando nossos sentidos a
esses objetos, voltamos a adquirir o conhecimento que já possuíramos num
tempo anterior: o que denominamos aprender não será a recuperação de um
conhecimento muito nosso? E não estaremos empregando a expressão correta, se
dermos a esse processo o nome de reminiscência/?
Perfeitamente.
Pois já se nos revelou como possível, ao percebemos alguma coisa, pela vista
ou pelo ouvido, ou por qualquer outro sentido, pensar em outra de que nos
havíamos esquecido, mas que se associa com a primeira por parecer-se com ela
ou por lhe ser dessemelhante. Desse modo, como disse, uma das duas há de ser,
por força: ou nascemos com tal conhecimento e o conservamos durante toda a
vida, ou então as pessoas das quais dizemos que aprendem posteriormente, o que
fazem é recordar, vindo a ser o conhecimento reminiscência.
Tudo se passa realmente desse modo, Sócrates.
XXI - Então, que escolhes, Símias? Nascemos com o conhecimento ou nos
recordamos ulteriormente do que conhecemos ante?
Assim de pronto, Sócrates, não sei como decidir-me.
Como? Sobre isto podes perfeitamente decidir-te e dizer o que pensas: quem
sabe, está em condições de dar as razões do que sabe, ou não?
Necessariamente, Sócrates, respondeu.
E és de parecer que todo o mundo possa dar as razões das questões que
acabamos de tratar?
Tomara que o pudessem! Porém receio muito que amanhã a estas horas não
haja aqui uma só pessoa em condições de fazê-lo.
Decerto, Símias, continuou, não és de opinião que todos os homens entendam
dessa questões.
De forma alguma.
Nesse caso, recordam-se do que aprenderam antes?
Necessariamente.
E quando é que nossas almas adquirem esses conhecimento? Não há de ser a
partir do momento em que nascemos como homens.
Não, decerto.
Então é antes?
Sim.
Logo, Símias, as almas existem antes de assumirem a forma humana,
separadas dos corpos, e possuírem entendimento.
A menos, Sócrates, que adquiramos tal conhecimento ao nascer, pois ainda
falta considerar esse tempo.
Que seja, companheiro! Mas então, em que tempo perdemos esse
conhecimento? Ao nascermos não dispomos dele, como acabamos de admitir.
Ou será que o perdemos no momento exato em que o adquirimos? Poderás
indicar outro tempo?
Não há jeito, Sócrates, sem o querer, disse uma tolice.
XXII - Nossa situação, Símias, não será a seguinte? Se existe, realmente, tudo
isso com que vivemos a encher a boca: o belo e o bom e todas as essências desse
tipo, e se a elas referimos tudo o que nos chega por intermédio dos sentidos,
como a algo preexistente, que encontramos em nós mesmos e com que o
comparamos: será forçoso que, assim como elas, exista nossa alma antes de
nascermos, e que sem aquelas estas não existiriam?
Mais que exata, falou Símias, me parece, Sócrates, a mesma necessidade; é
muito segura a posição a que se acolhe o argumento, no que entende com a
afinidade entre as essências a que te referiste, e nossa alma, antes de nascermos.
Não sei de nada tão claro como dizer que todos esses conceitos existem na mais
elevada acepção do termo: o belo, o bem e tudo o mais que enumeraste há
pouco. Essa demonstração me satisfaz plenamente.
E a Cebete? Perguntou; precisas também convencer Cebete.
A ele também satisfaz, respondeu Símias, segundo penso, muito embora seja
o homem mais difícil de aceitar a opinião dos outros. Mas creio que já esse
encontra convencido de que nossa alma existe antes de nascermos.
XXIII - Porém Sócrates, que ela continue a existir depois de nossa morte é o
que não me parece suficientemente demonstrado, pois ainda está de pé a opinião
do vulgo a que Cebete se referiu há pouco: Quem sabe se no instante preciso em
que o homem morre, a alma se dispersa, sendo esse, justamente, o seu fim? Que
impede, de fato que ela nasça algures e se constitua de outros elementos e exista
antes de alcançar o corpo humano, mas depois de entrar no corpo, quando tiver
de separar-se dele, também acabe de uma vez e venha a destruir-se?
Falaste bem, Símias, observou Cebete. Parece que só foi demonstrado
metade do que era de mister, a saber: que nossa alma existe antes de nascermos;
ainda falta provar, por conseguinte, que depois de morrermos ela não existirá
menos do que antes do nascimento. Só assim ficará completa a demonstração.
Foi completada agora mesmo, Símias e Cebete, observou Sócrates; bastará
juntardes o presente argumento ao que admitimos antes, de que tudo o que vive
só nasce do que é morto. Porque se as almas existem antes do nascimento e se,
necessariamente, para começarem a vida e existirem, não poderão provir de
outra parte a não ser da morte do que está morto, não será forçoso que
continuem a existir depois da morte, para renascerem? Como disse, essa parte já
foi demonstrada.
XXIV - Porém verifico, Símias e Cebete, que ambos vós folgaríeis de
examinar mais a fundo essa questão, pois, como as crianças, temeis, de fato, que
o vento arraste a alma e a disperse no momento em que ela deixa o corpo,
máxime se na hora em que morre alguém o céu não estiver sereno e soprar
vento forte.
E Cebete, desatando a rir, Faze de conta, Sócrates, observou, que estamos
com medo, e procura convencer-nos. Ou melhor: será preferível admitires, não
que temos medo, mas que talvez haja dentro de nós uma criança que se assusta
com essas cosias. Trata, por conseguinte, de convencê-la a não ter medo da
morte como do bicho-papão.
Para tanto, lhes falou Sócrates, será preciso exorcizá-la diariamente, até
passar o medo.
E onde, Sócrates, perguntou, encontraremos um bom exorcizador, uma vez
que nos abandonas?
A Hélade é grande, Cebete, replicou, e nela há muitos homens de
merecimento. Grandes também sãos as gerações bárbaras, que precisareis
esquadrinhar para encontrar um mágico nessas condições, sem olhar despesas
nem fadiga, pois em nada mais poderíeis aplicar o vosso dinheiro. Mas convém
promoverdes essa busca também entre vós outros, pois talvez não seja fácil
encontrar quem se desincumba disso melhor do que vós mesmos.
É o que faremos, falou Cebete. Porém se levares gosto nisso, voltemos para o
ponto em que ficamos antes.
Agrada-me a proposta, como não?
XXV - Agora o de que precisamos, falou Sócrates, é perguntar a nós mesmo
mais ou menos o seguinte: Com que coisas é natural semelhante processo de
dispersão, com quais devemos ter medo de que isso aconteça, e com quais não
devemos? De seguida, teremos de examinar a qual das classes pertence a alma,
para daí concluirmos se precisamos alegrar- nos ou temer do que venha a
acontecer com a nossa.
É muito certo, disse.
E não é verdade que as coisas, artificial ou naturalmente compostas é que
devem acabar por dispersar-se nos elementos originais? E o inverso: não será o
que não for composto, antes de tudo, a única coisa que não convém passar por
esse processo de dissociação?
Acho que é assim mesmo, observou Cebete.
E também não é certo que há muita probalidade de não serem compostas as
coisas que sempre se mantêm no mesmo estado e nunca se alteram, como serão
compostas as que ora se apresentam de uma forma, ora de outra, e mudam a
cada instante?
É também o que eu penso.
Então, prosseguiu, retomemos o tema de nossa discussão anterior. Aquela
idéia ou essência a que em nossas perguntas e respostas atribuímos a verdadeira
existência, conserva-se sempre a mesma e de igual modo, ou ora é de uma
forma, ora de outra? O igual em si, o belo em sim, todas as coisas em si mesmas,
o ser, admitem qualquer alteração? Ou cada uma dessas realidades, uniformes e
existentes por si mesmas, não se comportará sempre da mesma forma, sem
jamais admitir de nenhum jeito a menor alteração?
Forçosamente, Sócrates, falou Cebete, sempre permanecerá a mesma e do
mesmo jeito.
E com relação à multiplicidade das coisas belas: homens, cavalos, vestes e
tudo o mais da mesma natureza, que ou são iguais ou belas e recebem a própria
designação daquelas realidades: conservam-se sempre idênticas ou,
diferentemente das essências, não são jamais idênticas, nem com relação às
outras nem, por assim dizer, consigo mesmas?
Isso, justamente, Sócrates, é o que se observa, respondeu Cebete, nunca se
conservam as mesmas.
E não é certo também que todas essas coisas se podem ver e tocar ou
perceber por intermédio de qualquer outro sentido, ao passo que as essências, que
se conservam sempre iguais a si mesmas, só podem ser apreendidas pelo
raciocínio, por serem todas elas invisíveis e estarem fora do alcance da visão?
O que dizes, observou, é a pura verdade.
XXVI - Achas, então, perguntou, que podemos admitir duas espécies de
coisas: umas visíveis e outras invisíveis?
Podemos, respondeu.
Sendo que as invisíveis são sempre idênticas a si mesmas, e as visíveis, o
contrário disso?
Admitamos também esse ponto, respondeu.
Então, prossigamos, uma parte de nós mesmos não é corpo, e a outra não é
alma?
Sem dúvida, falou.
E com qual daquelas classes diremos que o corpo é mais conforme e tem
mais afinidade?
Para todo o mundo é evidente que é com a das coisas visíveis.
E com relação à alma? É visível, ou será invisível?
Pelo menos para o homem, não o será, Sócrates, respondeu.
Mas, quando falamos do que é ou não é visível, é sempre com vista à
natureza humana. Ou achas que seja com relação a outra?
Não; é com a natureza humana, mesmo.
E a alma? Que diremos dela: poderemos vê-la ou não?
Não podemos.
Logo, é invisível.
Certo.
Sendo assim, a alma é mais conforme à espécie invisível do que o corpo, e
este mais à visível.
De toda a necessidade, Sócrates.
XXVII - Mas também dissemos há alguns instantes, que quando a alma se
serve do corpo para considerar alguma coisa por intermédio da vista ou do
ouvido, ou por qualquer outro sentido - pois considerar seja o que for por meio
dos sentidos é fazê-lo por intermédio do corpo - é arrastada por ele para o que
nunca se conserva no mesmo estado, passando a divagar e a perturbar-se, e
ficando tomada de vertigens, como se estivesse embriagada, pelo fato de entrar
em contato com tais coisas?
Sim, dissemos isso mesmo.
E o contrário disso: quando ela examina sozinha alguma coisa, volta-se para o
que é puro, sempiterno, e que sempre se comporta do mesmo modo, e por lhe ter
afinidade, vive com ele enquanto permanecer consigo mesma e lhe for
permitido, deixando, assim, de divagar e pondo-se como relação com o que é
sempre igual e imutável, por esta em contato com ele. A esse estado, justamente,
é que damos o nome de pensamento.
Tudo isso, Sócrates, é verdadeiro e foi muito bem enunciado.
E agora, de acordo com o presente argumento e o anterior, com qual dessas
duas espécies a alma se mostra semelhante e revela maior afinidade?
No meu modo de pensar, Sócrates, respondeu, não há quem deixe de
concordar, por mais obtuso que seja, se te acompanhar o raciocínio, que em tudo
e por tudo a alma tem mais semelhança com o que sempre se conserva o
mesmo do que com o que varia.
E o corpo?
Com a outra espécie.
XXVIII - Examina agora a questão da seguinte maneira: enquanto se
mantêm juntos o corpo e a alma, impõe a natureza a um dele obedecer e servir e
ao outro comandar e dominar. Sob esse aspecto, qual deles se assemelha ao
divino e qual ao mortal? Não te parece que o divino é naturalmente feito para
comandar e dirigir, e o mortal para obedecer e servir?
Acho que sim.
E com qual deles a alma se parece?
Evidentemente, Sócrates, a alma se assemelha ao divino, e o corpo ao mortal
.
Considera agora, Cebete, continuou, se de tudo o que dissemos não se conclui
que ao que for divino, imortal, inteligível, de uma só forma, indissolúvel, sempre
no mesmo estado e semelhante a si próprio é com o que alma mais se parece; e
o contrário: ao humano, mortal e ininteligível, multiforme, dissolúvel e jamais
igual a si mesmo, com isso é que o corpo se parece? Poderemos, amigo Cebete,
argumentar de outro modo e dizer que não é dessa maneira?
Não é possível.
XXIX - E então? Se for assim, não ficará o corpo sujeito a dissolver-se
depressa, conservando-se a alma indissolúvel ou num estado que muito disso se
aproxima?
Sem dúvida.
Observa ainda, continuou, como depois que o homem morre, sua porção
visível, o corpo, a que damos o nome de cadáver, colocado também num lugar
visível, embora o sujeito a dissolver-se, a desagregar-se, de imediato não revela
nenhuma dessas alterações, conservando-se intacto por tempo relativamente
longo; e se, no momento da morte, o corpo estiver em boas condições, sendo boa,
igualmente, a estação do ano, então conserva-se muito mais tempo. Quando o
corpo é descarnado e embalsamado, tal como se faz no Egito, ele permanece
quase inteiro por tempo incalculável. Aliás, até mesmo no corpo em
decomposição, alguma de suas partes: ossos, tendões; e tudo mais do gênero, são,
por assim dizer, imortais. Não é isso mesmo?
Certo.
Ao passo que a alma, a porção invisível, que vai para um lugar semelhante a
ela, nobre, puro e invisível, o verdadeiro Hades, ou seja, o Invisível, para junto de
um deus sábio e bom, para onde também, se Deus quiser, dentro de pouco irá
minha alma: essa alma dizia, com semelhante origem e constituição. Ao separarse
do corpo, no mesmo instante se dissiparia e viria a destruir, conforme crê a
maioria dos homens: Nunca, meus caros Símias e Cebete! Pelo contrário; o que
se dá é o seguinte: se ela é pura no momento de sua libertação e não arrastar
consigo nada corpóreo, por isso mesmo que durante a vida nunca mantivera
comércio voluntário com o corpo, porém sempre evitara, recolhida em si
mesma e tendo sempre isso como preocupação exclusiva, que outra coisa não é
senão filosofar, no rigoroso sentido da expressão, e preparar-se para morrer
facilmente... Pois tudo isso não será um exercício para a morte?
Sem dúvida nenhuma.
Assim constituída, dirigi-se para o que lhe assemelha, para o invisível, divino,
imortal e inteligível, onde, ao chegar, vive feliz, liberta do erro, da ignorância, do
medo, dos amores selvagens e dos outros males da condição humana, passando
tal como se diz dos iniciados, a viver o resto do tempo na companhia dos deuses.
Falaremos desse jeito, Cebete, ou de outra forma?
XXX - Assim mesmo, por Zeus, respondeu Cebete.
No caso, porém, conforme penso, de estar manchada e impura ao separar-se
do corpo, por ter convivido sempre com ele, cuidado dele e o ter amado e estar
fascinada por ele e por seus apetites e deleites, a ponto de só aceitar como
verdadeiro o que tivesse forma corpórea, que se pode ver, tocar, beber, comer,
ou servir para o amor; e se ela, que se habituou a odiar, temer e evitar o que é
obscuro e invisível para os olhos, porém inteligível e apreensível com à filosofia:
acreditas que uma alma nessas condições esteja recolhida em si mesma e sem
mistura no momento em que deixar o corpo?
De forma alguma, respondeu.
Porém segundo penso, de todo em todo saturada de elementos corpóreos que
com ela cresceram como resultado de sua familiaridade e contínua
comunicação com o corpo, de que nunca se separou e de que sempre cuidara.
Sem dúvida.
Então, meu caro, terás de admitir que tudo isso é espesso, terreno e visível. A
alma, com essa sobrecarga, torna-se pesada e é de novo arrastada para a região
visível, de medo do Invisível - o Hades, como e diz - e rola por entre os
monumentos e túmulos, na proximidade dos quais têm sido vistos fantasmas
tenebrosos, semelhantes aos espectros dessas almas que não se libertaram puras
de corpo e que se tornaram visível.
É muito possível, Sócrates, que seja assim mesmo.
Sim, é muito possível, Cebete, e também que essas almas não sejam dos
bons, porém dos maus, que se vêem obrigadas a vagar por esse lugares, como
castigo de sua conduta durante a vida, que fora péssima. E assim ficam a vagar,
até que o apetite do elemento corporal a que sempre estão ligadas volte a prendêlas
noutros corpos.
XXXI - Como é natural, voltam a ser aprisionadas em naturezas de costumes
iguais aos que elas praticaram em vida.
A que a naturezas te referes, Sócrates?
É o seguinte: as que eram dadas à glutonaria, ao orgulho ou à embriaguez
desbragada, entram naturalmente nos corpos de asnos e de animais congêneres.
Não te parece?
Falas com muita propriedade.
As que cometeram injustiças, a tirania ou a rapina, passam para a geração
dos lobos, dos açores e dos abutres. Para onde mais podemos dizer que vão as
almas dessa natureza?
Não há dúvida, respondeu Cebete; é para esses corpos que elas vão.
E não é evidente, continuou, que o mesmo se passa com os demais, por se
orientarem todas elas no sentido de suas próprias tendências?
É claro, observou; nem poderia ser de outra maneira.
Logo, disse, os mais felizes e que vão para os melhores lugares são os que
praticam a virtude cívica e social que dominamos temperança e justiça, por
força apenas do hábito e da disposição própria, sem a participação da filosofia e
da inteligência.
Por que serão esses os mais felizes?
Por ser natural que passem para uma raça sociável e mansa, de abelhas,
vespas ou formigas, ou até para a mesma raça, a humana, a fim de gerarem
homens moderados.
Sem dúvida.
XXXII - Para a raça dos deuses não é permitido passar os que não
praticaram a Filosofia nem partiram inteiramente puros, mas apenas os amigos
da Sabedoria. É por isso, meus caros Símias e Cebete, que os verdadeiros
filósofos se acautelam contra os apetites do corpo, resistem-lhes e não se deixam
dominar por eles; não têm medo da pobreza nem da ruína de sua própria casa,
como a maioria dos homens, amigos das riquezas, nem temem a falta de
honrarias e a vida inglória, como se dá com os amantes do poder e das distinções.
Não é essa a razão de se absterem de tudo?
De fato, Sócrates; nada disso lhes ficaria bem, falou Cebete.
Não, por Zeus, retorquiu. Por isso mesmo, Cebete, todos os que cuidam da
alma e não vivem simplesmente para o culto do corpo, dizem adeus a tudo isso e
não seguem o caminho dos que não sabem para onde vão. Convencidos de que
não devemos fazer nada em contrário à Filosofia nem ao que ela prescreve para
libertar-nos e purificar-nos, voltam- se para esse lado, seguindo na direção por
ela aconselhada.
XXXIII - De que modo, Sócrates?
Vou dizer-te, respondeu. Estão perfeitamente cientes os amigos da Sabedoria,
que quando a Filosofia passa a dirigir-lhes a alma, esta se encontra como que
ligada e aglutinada ao corpo, por intermédio do qual é forçada a ver a realidade
como através das grades de um cárcere, em lugar de o fazer sozinha e por si
mesma, porém atolada na mais absoluta ignorância. O que há de terrível nesse
liames, reconhece-o a Filosofia, é consistirem nos prazeres e ser próprio
prisioneiro quem mais coopera para manietar-se. Como disse, os amigos da
Sabedoria estão cientes de que, ao tomar conta de sua alma em tal estado, a
Filosofia lhe fala com doçura e procura libertá-la, mostrando-lhe quão cheio de
ilusões é o conhecimento adquirido por meio dos olhos, quão enganador o dos
ouvidos e dos mais sentidos, aconselhando-a a abandoná-los e a não fazer uso
deles se não só o necessário, e a recolher-se e concentrar-se em si mesma e só a
acreditar em si própria e no que ela em si mesma aprender da realidade em si, e
o inverso: a não aceitar como verdadeiro tudo o que ela considerar por meios que
em cada caso se modificam, pois as coisas desses gênero são sensíveis e visíveis,
ao passo que é inteligível e invisível o que ela vê por si mesma. Convencida de
que não deve opor-se a semelhante libertação, a alma do verdadeiro filósofo
abstém dos prazeres, das paixões e dos temores, tanto quanto possível, certa de
que sempre que alguém se alegra em extremo, ou teme, ou deseja, ou sofre, o
mal daí resultante não é o que se poderia imaginar, como seria o caso, por
exemplo, de adoecer ou vir a arruinar-se por causa das paixões: o maior e o pior
dos males é o que não se deixa perceber.
Qual é, Sócrates? perguntou Cebete.
É que toda alma humana, nos casos de prazer ou de sofrimento intensos, é
forçosamente levada a crer que o objeto causador de semelhante emoção é o
que há de mais claro e verdadeiro, quando, de fato, não é assim. De regra, tratase
de coisas visíveis, não é isso mesmo?
Perfeitamente.
E não é quando passa por tudo isso que a alma se encontra mais intimamente
presa ao corpo?
Como assim?
Porque os prazeres e os sofrimentos são como que dotados de um cravo com
o qual transfixam a alma e a prendem ao corpo, deixando-a corpórea e levandoo
a acreditar que tudo o que o corpo diz é verdadeiro. Ora, pelo fato de ser da
mesma opinião que o corpo e de se comprazer com ele, é obrigada, segundo
penso, a adotar seus costumes e alimentos, sem jamais poder chegar ao Hades
em estado de pureza, pois é sempre saturada do corpo que ela o deixa. Resultado:
logo depois, volta a cair noutro corpo, onde cria raízes como se tivesse sido
semeada nele, ficando de todo alheia da companhia do divino, do que é puro e de
uma só forma.
É muito certo o que disseste, observou Cebete.
XXXIV - Essa é a razão, Cebete, de serem temperantes e corajosos os
verdadeiros amigos do saber, não pelo que imagina o povo. Ou achas que sim?
Eu? De forma alguma.
Não, de fato; a alma do filósofo não raciocina desse jeito nem pensa que a
filosofia deva libertá-la, para, depois de livre, entregar-se de novo aos prazeres e
às dores e voltar a acorrentar-se, deixando írrito seu esforço anterior e como que
empenhada em fazer o inverso do trabalho de Penélope em sua teia. Ao
contrário: alcançando a calmaria das paixões e guiando-se pela razão, sem nunca
a abandonar, contempla o que é verdadeiro e divino e que paira acima das
opiniões, certa de que precisará viver assim a vida toda, para depois da morte,
unir-se ao que lhe for aparentado e da mesma natureza, liberta das misérias
humanas. Não é de admirar, Símias e Cebete, que uma alma alimentada desse
jeito e com semelhante ocupação não tenha medo de desmembrar-se quando se
retirar do corpo, e de ser dispersada pelos ventos, dissipando-se do todo, sem vir a
ficar em parte alguma.
XXXV - A essas palavras de Sócrates, seguiu-se prolongado silêncio. Como
se poderia observar, o próprio Sócrates meditava no tema desenvolvido na
conversação, o que, aliás, acontecia com quase todos os presentes. Cebete e
Símias falaram de socapa alguma coisa, o que foi percebido por Sócrates, que
lhes disse:
E então? Perguntou: quem sabe se sois de parecer que ainda falta dizer algo?
Em verdade, muitas dúvidas. E objeções poderiam ser levantadas por quem se
dispusesse a aprofundar o tema. Se tratais agora de outro assunto, não digo nada;
porém se o nosso mesmo é que vos atrapalha, expõem sem acanhamento o que
vos parecer indicado para melhor esclarecimento da questão, ou permiti que eu
também tome parte no diálogo, no caso de julgardes que com a minha
cooperação podeis vencer mais facilmente as dificuldades.
Símias, então, falou: Sendo assim, Sócrates, vou dizer-te a verdade. Já faz
tempo que estamos em dúvida e procuramos animar-nos reciprocamente a
dirigir-te perguntas, pelo desejo de ouvir-te falar, porém temos medo de
incomodar-te por causa do presente infortúnio.
Ouvindo-o expressar-se desse modo, respondeu Sócrates, esboçando um
sorriso: Ora, Símias! Dificilmente chegarei a convencer os outros homens que
não considero nenhuma desgraça minha situação neste momento, se nem a vós
mesmos consigo persuadir, por terdes receio de eu estar agora com ânimo
diferente. Pelo que vejo, considerais- me inferior aos cisnes, pois quando estes
percebem que estão perto de morrer, por terem cantado a vida toda, mais vezes
e melhor põem se a cantar, contentes de partirem para junto do deus de que são
os servidores. Porém com seu medo característico da morte, os homens
caluniam os cisnes, com afirmarem que eles cantam por chorarem a morte, de
tristeza, sem refletirem que nenhum ave canta quando tem fome ou frio, ou
quando presa de outra angústia, nem mesmo o rouxinol, a andorinha ou a poupa,
cujo canto, segundo dizem, serve de alimentar a dor. Porém não creio que
nenhum deles cante por estarem tristes, muito menos os cisnes. Ao contrário: por
pertencerem a Apolo, segundo penso, têm o Dom da profecia, e por preverem as
delícias do Hades, cantam e se alegram nesse dia muito mais do que antes. Eu,
de minha parte, também me considero servidor igual da divindade, como os
cisnes, e a ela consagrado, e por ser dotado pelo meu senhor de não menor Dom
de profecia, não deixarei a vida com menos coragem do que eles. Por isso,
podeis falar à vontade e formular as perguntas que entenderdes todo o tempo que
o permitirem os onze cidadãos de Atenas.
Perfeito, falou Símias, pois então vou dizer-te quais são as minhas dúvidas,
para depois indicar este aqui os pontos de tua exposição com que ele não
concorda. Sobre esses assunto, Sócrates, creio estar de acordo contigo, que se
nesta vida não for impossível saber a essa respeito algo definitivo, é
extremamente difícil. Mas também será prova de fraqueza deixar de analisar por
todos os modos o que foi dito, e não abandonar o assunto enquanto não sentirmos
cansaço. Neste passo vemo-nos ante o dilema: aprender e descobrir o de que se
trata, ou, no caso de não ser isso possível, adotar a melhor opinião e a mais difícil
de contestar, e nela instalando- nos à guisa de jangada, procurar fazer a travessia
da vida, na hipótese de não conseguir isso mesmo com maior facilidade e menos
perigo numa embarcação mais firme, ou seja, com alguma palavra divina.
Assim, não ficarei acanhado agora de interrogar-te, já que tu próprio mo
aconselhas, nem precisarei censurar-me de futuro por não te haver dito hoje o
que pensava. O fato, Sócrates, é que quando reflito no que disseste, ou seja
comigo mesmo ou na companhia deste aqui, tenho a impressão de que nem tudo
ficou bem fundamentado.
XXXVI - Sócrates respondeu: Talvez, companheiro, lhe falou, estejas com a
razão; porém explica o que não te parece bem fundamentado.
É que seria possível alegar a mesma coisa, continuou, a respeito da harmonia
e da lira com suas cordas, a saber: que a harmonia é algo invisível, incorpóreo e
sumamente belo numa lira bem afinada, e que esta, por sua vez, é corpo, com
também o são as cordas, coisas materiais, compostas, terrenas e de natureza
morta. Ora, no caso de alguém quebrar a lira e cortar ou arrebentar as cordas,
alguém poderia argumentar como o fizeste: forçosamente aquela harmonia
ainda vive, pois não foi destruída; pois não é possível subsistir a lira depois de se
partirem as cordas, e as próprias cordas, todas elas de natureza morta, e
desaparecer a harmonia, da mesma natureza e da família do divino e do imortal,
que assim viria a ser destruída até mesmo antes do que é perecível. Não,
prosseguiria essa pessoa; necessariamente a harmonia terá de continuar em
qualquer parte, por ser forçoso que a madeira apodreça primeiro, e as cordas,
antes de acontecer àquela alguma coisa. A esses respeito, Sócrates, creio que tu
mesmo já consideraste que a noção da alma admitida por nós é mais ou menos a
seguinte: Da mesma foram que temos o corpo distendido e coeso pelo calor e o
frio, o seco e o úmido, e tudo o mais do mesmo gênero, viria a ser nossa alma a
mistura e a harmonia de todos esses elementos, quando combinados em justa
proporção. Ora, se nossa alma for uma espécie de harmonia, é evidente que, ao
ficar relaxado o corpo, ou distendido em excesso, por doenças e outras
perturbações, forçosamente a alma fenecerá logo, em que pese à sua natureza
divina, tal como se dá com as outras harmonias, tanto as resultantes de sons como
das demais obras dos artista; ao passo que os despojos do corpo perduram por
muito tempo, até que o fogo os destrua ou venham a apodrecer. Vê, portanto, o
que devemos opor a esses argumentos, no caso de alguém nos vir dizer que a
alma, por ser a mistura dos elementos do corpo, é a primeira a fenecer naquilo
que chamamos morte.
XXXVII - Sócrates se conservou durante algum tempo com o olhar parado,
como era seu costume; depois falou, sorrindo: A objeção de Símias, declarou, é
procedente. Se algum de vós estiver em melhores condições do que eu, por que
não responde a ele? O argumento dele é muito feliz. Porém antes de formular
qualquer resposta, sou de parecer que devemos primeiro ouvir o que tem Cebete
a opor à nossa tese, pois assim ganharemos tempo para refletir no que será
preciso dizer. E depois de ouvir a ambos, dar-lhes-emos nossa aprovação, se nos
parecerem bem afinados os argumentos; caso contrário; dizendo logo o que te
deixa atrapalhado.
Vou dizer, respondeu Cebete. A meu parecer, nosso argumento não saiu do
lugar e continua como alvo das mesmas objeções de antes. Que nossa alma já
existisse antes de assumir esta forma, é proposição que não me repugna aceitar,
por engenhosa e - salvo imodéstia de minha parte - suficientemente
demonstrada. Porém que subsista algures depois de estarmos mortos, com isso é
que não posso concordar. Não aceito, também o reparo de Símias, quando
afirma que a alma não é mais forte nem mais durável do que o corpo, pois sob
ambos os aspectos ela se distingue imensamente dele. Por que então, lhe diria o
argumento, ainda te mostras incrédulo, se estás vendo que depois da morte do
homem sua porção mais fraca ainda subsiste? Não te parece que a porção mais
durável terá forçosamente de sobreviver igual tempo? Vê agora se o que digo
contém alguma substância. Para maior comodidade vou socorrer-me, como o
fez Símias, de uma imagem. Para mim, falar desse jeito é o mesmo que fazer as
seguintes considerações a respeito de um velho tecelão que acabasse de morrer:
o homem não está morto: continua vivo em alguma parte; e para prova dessa
afirmação, apresentasse a roupa que ele então trazia no corpo, tecida por ele
mesmo, conservada e sem ter ainda perecido. E se alguém se mostrasse
incrédulo, poderia perguntar o que é por natureza mais durável, imaginaria ter
demonstrado que com maioria de razões o homem terá de estar bem, visto não
haver perecido o que por natureza é menos durável. Porém a meu ver, Símias, a
realidade, é muito diferente. Presta atenção ao seguinte: Não há quem não veja
quanto é fraco semelhante argumento. Havendo gasto muitas roupas por ele
próprio tecidas, o nosso homem morreu, de fato, depois de todas, e não foram
poucas, porém antes da última, segundo penso; mas nem por isso o homem é
inferior ou mais fraco do que a roupa. Essa imagem, quero crer, se aplica tanto à
alma como ao corpo, e quem argumentasse desse modo com relação ao corpo,
falaria com muito mais propriedade, a saber: que a alma é mais durável e o
corpo mais fraco e transitório, pois fora acertado acrescentar que cada alma
consome vários corpos, principalmente quando vive muitos anos. Se o corpo se
escoa e se deliquesce enquanto o homem vive, a alma retece de contínuo o que
for consumido. Forçoso será, por conseguinte, que, no instante de morrer, ainda
esteja a alma com a última vestimenta por ela feia, só vindo a morrer antes da
última. Desaparecida a alma, mostra, de pronto, o corpo sua fraqueza natural e
se desmancha pela putrefação. Por isso mesmo, com base nesses argumentos
não podemos confiar que nossa alma subsista algures depois da morte. E se
alguém concedesse ao expositor de tua proposição mais ainda do que fazes e lhe
desse de barato não penas que nossas almas existem antes do tempo do
nascimento, sendo que nada impede, até mesmo depois de nossa morte,
existirem algumas e continuarem a existir, e muitas vezes renascerem e
tornarem a morrer, por serem de natureza bastante forte para suportar esses
nascimentos sucessivos: se lhe concedêssemos esse ponto, de todo o jeito ele se
recusaria a admitir que a alma não se esgota nesses nascimentos sucessivos, para
acabar numa dessas últimas mortes, por desaparecer de todo. Dessa morte
última, poderia acrescentar, e dessa decomposição do corpo que leva para a
alma a destruição, ninguém pode ter conhecimento, por não estar em nós
experimentá-la. Se as coisas se passam mesmo dessa forma, por força terá de
ser irracional a confiança de qualquer pessoa diante da morte, a menos que esse
alguém pudesse demonstrar que a alma é absolutamente imortal e imperecível.
Sendo isso impossível, não há como evitar que o moribundo se arreceie de que no
instante em que sua alma se desaparecer do corpo, venha a desaparecer de todo.
XXXVIII - Ao ouvi-los falar dessa maneira, todos nós nos sentimos
desagradavelmente impressionados, conforme depois confessamos a nós
mesmos; firmemente convencidos como ficáramos, ante os argumentos
anteriores, as palavras de agora como que nos deixavam inquietos e nos levavam
outra vez a duvidar, tanto com relação ao que já fora dito como ao que ainda
restava por dizer. Ou éramos maus juízes ou o assunto não admitia prova.
Equécrates - Pelos deuses, Fedão! Compreendo o que se passou convosco,
pois agora mesmo, perguntei-me em que argumento poderemos confiar daqui
por diante, se o que Sócrates acabou de desenvolver, com ser tão convincente,
perdeu de todo o crédito? É maravilhosa a atração que sobre mim sempre
exerceu, e ainda exerce, a doutrina de que nossa alma é uma espécie de
harmonia. O que acabaste de expor me fez lembrar que até ao presente eu a
aceitava. Mas agora necessito de novos argumentos para convencer-me de que a
alma não morre juntamente com o corpo. Dize logo, por Zeus, de que modo
Sócrates prosseguiu na sua argumentação? Porventura revelou desânimo, como
disseste ter acontecido com todos vós, ou, pelo contrário, defendeu a sua opinião
com a serenidade habitual? Foi completa ou falha nalgum ponto sua defesa?
Conta- nos tudo com a maior exatidão possível.
Fedão - Em verdade, Equécrates, por mais que antes eu tivesse admirado
Sócrates, nunca me senti tão arrebatado naquele instante. Não é de espantar que
um homem do seu estofo pudesse sair-se bem em semelhante conjuntura. Mas o
que nele, primeiro de tudo, me admirou ao extremo foi a maneira delicada,
cordial e deferente com o que acolheu as objeções dos moços; depois, a
sagacidade com que observou o efeito de suas palavras sobre nós e, por último,
como soube curar-nos: de fugitivos e derrotados, fez-nos voltar e concitou-nos a
segui-lo, para considerarmos junto o argumento.
Equécrates - De que modo?
Fedão - Vou te dizer como foi. Aconteceu que eu me achava, justamente à
sua direita, num banquinho ao pé do catre, ficando ele num plano muito mais
alto. Afagando- me a cabeça e abarcando com a mão os cabelos que me
cobriam a nuca - pois sempre que se lhe oferecia ocasião graceja a respeito de
minha cabeleira - me disse: Decerto é amanhã, Fedão, que vais pôr abaixo esta
bela cabeleira?
Penso que sim, Sócrates, respondi.
Não, se me aceitares um conselho.
Que devo, então, fazer? Perguntei.
Hoje mesmo, disse, cortarei a minha, como farás com a tua, se nosso
argumento vier a morrer e nos revelarmos incapazes de lhe dar lume e vida. De
minha parte, se eu estivesse em teu lugar e o argumento me escorregasse por
entre os dedos, faria um juramento à feição dos Argivos, de não deixar crescer
os cabelos enquanto não vencesse em luta franca a proposição de Símias e
Cibete.
Mas, como se costuma dizer, objetei-lhe, contra dois nem Hércules aguenta.
Então, chama- me em teu auxílio, enquanto é dia; serei o teu Iolau.
Bem, chamarei, lhe respondi; porém não na qualidade de Herácles: Iolau é
que vai chamar Herácles em seu auxílio.
Tanto faz, me disse.
XXXIX - Inicialmente, precatemo-nos contra certo perigo.
Qual será? Perguntei.
Para não ficarmos misólogos, disse, como outros ficam misantropos. O que
de pior pode acontecer a qualquer pessoa é tornar-se inimigo da palavra. A
misologia e a misantropia têm a mesma origem. O ódio aos homens nasce do
excesso de confiança sem razão de ser, quando consideramos alguém fiel,
sincero e verdadeiro, e logo depois descobrimos que se trata de pessoa corrupta e
desleal, e depois outra mais nas mesmas condições. Vindo isso a repetir-se várias
vezes com o mesmo paciente, principalmente se se tratar de amigos íntimos e
companheiros de alto crédito, depois de decepções seguidas, acaba essa pessoa
por odiar os homens e acreditar que ninguém é sincero. Nunca observaste que é
assim mesmo que as coisas se passam.
Sem dúvida, respondeu.
E não é isso vergonhoso? Continuou. Pois é claro que esse indivíduo procura o
convívio com seus semelhantes sem conhecer devidamente a natureza humana,
pois se dispusesse de alguma experiência nas suas relações com eles, teria
compreendido como é realmente o mundo, isto é, que são poucos os indivíduos
inteiramente bons ou maus de todo, e que a maioria constitui o meio-termo.
Como assim? Perguntou.
É o mesmo que acontece, prosseguiu, com as pessoas excessivamente baixas
ou excessivamente altas. Julgas que pode haver nada mais raro do que
encontrarmos um homem muito grande ou muito pequeno, ou um cão, ou seja o
que for? O mesmo se diga do veloz e do lento, do feio e do belo, do branco e do
preto. Ou não percebeste que em tudo isso os extremos são raros e pouco
numerosos, e os da mediania, extremamente freqüentes e em grande número?
Perfeitamente, respondi.
E não te parece, continuou, que se se organizasse um concurso de maldade,
os primeiros se apresentariam em número muito reduzido?
É muito provável, respondi.
Sim, muito provável, continuou. Porém não é sob esses aspecto que os
argumentos se parecem com os homens. Neste passo não fiz senão seguir tua
orientação. A semelhança consiste no seguinte: quando se admite a exatidão de
um argumento, sem ser-se versado na arte da dialética, pode acontecer que logo
depois ele nos pareça falso, às vezes com fundamento, outras vezes sem nenhum,
e depois mais outro e mais outra da mesma natureza. Como sabes, é o que se
verifica com os disputadores de razões contraditórias, que acabam por
considerar-se os maiores sábios, por serem os únicos a reconhecer que nada há
de são e firme, nem nas coisas, nem no raciocínio, encontrando-se tudo, em
verdade, em permanente agitação, tal como se dá com as águas do Euripo, sem
permanecer nada, um só instante, no mesmo estado.
É muito certo o que dizes, observei.
E se, de fato, existe raciocínio verdadeiro e estável, capaz de ser
compreendido, não seria de lastimar, Fedão, no caso de ouvir alguém esses
argumentos que ora parecem verdadeiros ora falsos, em vez de inculpar-se ou à
sua própria incapacidade, acabasse por irritar-se e comprazer-se em tirar de si a
culpa para lançar no raciocínio, e passar, daí por diante, o resto da vida a odiá-lo
e a depreciá-lo, com o que só alcançaria privar-se da verdade e do
conhecimento das coisas?
Por Zeus, lhe disse; seria, de fato grande lástima.
XL - Assim, continuou, de início precisamos acautelar- nos contra
semelhante perigo; não permitamos o ingresso em nossa alma da idéia de que
não há nada são em nosso raciocínio; digamos, isso sim, que nós é que ainda não
estamos suficientemente sãos, mas que devemos esforçar-nos para alcançar esse
desiderato, tu e os demais, por causa da vida que ainda tendes pela frente; eu, por
motivo, justamente, da morte. Receio muito que, neste momento em que a morte
é tudo, não me haja como filósofo ou amigo da sabedoria., como se dá com os
indivíduos muito ignorantes. Estes tais, quando debatem algum tema, não se
preocupam absolutamente de saber como são, de fato, as coisas a respeito de que
tanto discutem, senão em deixar convencidos os circunstantes de suas próprias
asserções. Nisso põem todo o empenho. Eu, também, num ponto apenas, agora,
me diferencio deles: não me esforço por demonstrar aos presentes a verdade do
que afirmo, a não ser como acessório, mas por convencer-me, tanto quanto
possível, a mim mesmo. Meu cálculo, companheiro, é o seguinte; observa quanto
o argumento é interesseiro: Se for verdade o que eu disse, só haverá vantagem
em fortalecermos essa convicção; porém se nada mais houver depois da morte,
pelo menos não importunarei os presentes com minhas lamentações no
pouquinho de tempo que ainda me resta para viver. Aliás, esse estado de coisas
não vai durar muito, o que seria mau; acabará dentro de pouco. Preparado desse
modo, Símias e Cebete, continuou, é que aceitou a discussão. Quanto a vós outros,
se me aceitardes um conselho, concedei pouca atenção a Sócrates, porém muito
mais a verdade; se vos parecer que há verdade no que eu digo, concordai
comigo; caso contrário, resisti quanto puderdes, acautelando-vos para que no
meu entusiasmo não venha a enganar-vos e a mim próprio e me retire como as
abelhas, deixando em todos vós o aguilhão.
XLI - Porém prossigamos, continuou. Inicialmente, lembrai-me do que
dissestes, se vos parecer que não me recordo muito bem de tudo, Ou muito me
engano, Símias, ou tens dúvidas de receio de que a alma, apesar de mais bela e
divina do que o corpo, pereça antes deste, por ser uma espécie de harmonia.
Cebete terá admitido que a alma é mais durável do que o corpo, mas que
ninguém pode saber se depois de gastar sucessivamente muitos corpos, não
acabará também por desaparecer, quando abandonar o último corpo, vindo a ser
isso, precisamente, a morte: a destruição da alma, visto não parar nunca o corpo
de morrer. Não é isso mesmo, Símias e Cebete, o que precisamos examinar?
Ambos confirmaram a pergunta.
E os argumentos anteriores, prosseguiu, aceitai-os por junto, ou admitis alguns
e rejeitai outros?
Alguns, sim, responderam, outros não.
E que dizeis, então, continuou, daquilo do começo de que aprender é
recordar, e que se for assim, a nossa alma terá de existir em alguma parte, antes
de vir a ficar presa ao corpo?
Quanto a mim, falou Cebete, convenceste-me à maravilha com tua
exposição, não havendo outro argumento que até agora me tivesse despertado
maior entusiasmo.
Comigo, falou Símias, dá-se a mesma coisa, sendo difícil de conceber que eu
venha a mudar de opinião.
Então, falou Sócrates: No entanto, forasteiro de Tebas, é o que terás de fazer,
se continuares a dizer que a harmonia é algo composto, e a alma, uma espécie de
harmonia resultante da tensão dos elementos constitutivos do corpo. Pois decerto
não te permitirás afirmar que a harmonia, sendo um composto, é anterior aos
elementos de que é formada. Ou afirmarás isso mesmo?
De forma alguma, Sócrates, respondeu.
E não percebes, continuou, que é justamente o que se dá quando declaras que
a alma existia antes de ingressar no corpo do homem e de lhe assumir a forma,
porém é composta de elementos que até então não existiam? Harmonia não é o
que afirmas em tua comparação; ao contrário: primeiro existem a lira, as cordas
e os sons, sem nenhuma harmonia. Esta é a última a formar-se, como é também
a que desaparece mais cedo. De que modo porás em consonância esta asserção
com o que disseste antes?
Não há jeito, respondeu Símias.
No entanto, prosseguiu, se é preciso haver consonância, é quando se trata de
harmonia.
Sem dúvida, observou Símias.
Tuas proposições são desarmônicas, disse. Por conseguinte, qual delas
escolhes: a de que aprender é recordar ou a de que a alma é a harmonia?
Sobre todos os pontos, Sócrates, eu prefiro a primeira, porque a outra foi
aceita sem demonstração, por parecer-me verossímil e algum tanto conveniente,
razão de admiti-Ia a maioria dos homens. No entanto, estou certo de que as
demonstrações nessas comparações não passam de impostura, capazes de iludirnos
se não tomarmos as devidas precauções, em geometria com em tudo mais.
Mas o argumento relativo ao conhecimento e à reminiscência se baseia num
princípio digno de aceitação, pois foi asseverado que nossa alma existe antes
mesmo de ingressar no corpo, como o exige tua relação com a essência daquilo
que denominamos O que é. Ora, essa proposição, conforme estou convencido,
foi por mim adotada com argumentos muito sólidos. Daí, ver me forçado, ao que
parece, a não permitir que nem eu, nem ninguém afirme que a alma é
harmonia.
XLII - E o seguinte, Símias, perguntou, como te parece: és de opinião que a
harmonia, ou qualquer outro composto, poderá proceder de maneira diferente da
dos elementos se que é feito?
De forma alguma.
Como também não poderá, segundo penso, fazer ou sofrer o que quer que
seja que não façam ou sofram aqueles elementos.
Concordou.
É que não compete à harmonia conduzir os elementos que a compõem,
porém seguilos.
Declarou-se também de acordo.
Logo, de nenhum jeito a harmonia poderá mover-se ou soar, ou fazer seja o
que for em contrário dos elementos?
Não compreendo, disse.
Pois não é certo que se ela estiver mais harmonizada ou em grau maior, a
admitirmos que seja possível semelhante hipótese, tanto mais harmonizada será e
em maior grau, e se estiver menos e em grau menor, será menos harmonizada e
em grau menor?
Perfeitamente.
E da alma, justificar-se-á dizer a mesma coisa, que revela diferença, embora
mínima, em ser mais alma e em grau maior do que outra, ou menos alma e em
grau menor, nisso, justamente, de ser alma?
Nunca dos nuncas, respondeu.
Passemos adiante, continuou, por Zeus! De uma alma não dizemos que é
dotada de razão e de virtude, e que é boa, e de outra, pelo contrário, que é
destruída de senso, viciosa e má? E não estão certos os que afirmam semelhante
proposição?
Certíssimo, respondeu.
Sendo assim, os que admitem que a alma é harmonia, como explicarão a
existência dessas qualidades na alma, a saber, a virtude e o vício? Dirão,
porventura, que se trata de uma harmonia ou desarmonia de outra espécie? Que
uma delas, a boa, foi harmonizada e que, por ser harmonia, possui em si mesma
essa modalidade de harmonia, enquanto a outra, por não estar harmonizada,
carece absolutamente de harmonia?
Não sei o que responda, falou Símias; porém quero crer que o adepto dessa
doutrina se expressaria mais ou menos nesses termos.
No entanto, num ponto já ficamos de acordo, continuou: que nenhuma alma é
mais alma ou menos alma do que outra, o que eqüivale a aceitar que nenhuma
harmonia poderá ser mais harmonia ou maior - ou o inverso - do que outra, não é
verdade?
Perfeitamente.
Ora, se a harmonia não admite graus, não se concebe, também, que possa
ficar mais ou menos harmonizada. Não é isso mesmo?
Certo.
Mas a harmonia que não for nem mais harmonizada nem menos, poderá
participar em grau diferente da harmonia, ou sempre o fará na mesma
proporção?
Na mesma.
Sendo assim, a alma, uma vez que não será isso mesmo, alma, nem mais
nem menos, do que outra, também não poderá ser mais ou menos harmonizada.
Exato.
Donde vem que não participará em grau maior nem da harmonia nem da
desarmonia.
Não, de fato.
Nessas condições, ainda, como poderia uma alma participar em grau maior
ou menor do que outra, da virtude ou do vício, se o vício for desarmonia e a
virtude, harmonia?
Não é possível.
Logo, Símias, se bem considerarmos, nunca a alma poderá participar do
vício, se ela for, de fato, harmonia, pois a harmonia, evidentemente, sendo
sempre de maneira perfeita o que é, a saber, harmonia, não participará da
desarmonia.
Não, de fato.
Como não poderá a alma, por ser totalmente alma, participar do vício.
Como o poderia, de acordo com o que dissemos antes?
Como decorrência, portanto, de nosso argumento anterior, as almas de todos
os seres vivos são igualmente boas, se forem, por natureza, igualmente almas.
É também o que eu penso, Sócrates, respondeu.
E parecer-te-ia também certa a explicação, continuou, e que nosso
argumento viria a parar nisso, se fosse verdadeira a hipótese de que a alma é
harmonia?
De forma alguma, respondeu.
XLII - E agora, falou, de tudo o que há no homem, não dirás ser a alma,
justamente, que domina, máxime quando dotada de prudência?
É o que diria, sem dúvida.
De que modo: condescendendo com os apetites do corpo ou, de preferência,
opondo- lhes resistência? O que digo é o seguinte: se o corpo sente calor ou sede,
ela o puxa para trás, para não beber, e se tem fome, para não comer, e numa
infinidade de situações como essa vemos a alma opor-se às paixões do corpo. Ou
não?
Perfeitamente.
Por outro lado, não admitimos antes que, no caso de ser harmonia, nunca
poderia ficar a alma em dissonância com as tensões, os relaxamentos e as
vibrações de seus elementos componentes, e que, pelo contrário, ela sempre os
seguiria, sem nunca dirigi-los?
Admitimos isso, por que não?
E agora? O que verificamos não é que ela faz precisamente o contrário,
dirigindo todos os elementos de que a imaginamos composta, opondo-se-lhes em
quase tudo durante a vida inteira e dominando-os de mil modos, às vezes por
meio de castigos violentos e dolorosos, do âmbito da ginástica e da medicina, às
vezes por meios suasórios, com ameaças ou admoestações, em franco diálogo
com os apetites, as cóleras e os temores? É como imagina Homero isso mesmo
na Odisséia quando diz que Odisseu.
Bate, indignado, no peito e a si próprio desta arte se exprime:
Sê, coração, paciente, pois vida mais baixa e mesquinha já suportaste.
Pensas, então, que, ao compor essa passagem, ele considerava a alma uma
espécie de harmonia, capaz de ser dirigida pelas disposições do corpo, ou o
contrário, própria para dirigi-lo e dominá-lo, por ser algo, justamente, muito mais
divino do que uma simples harmonia?
Por Zeus, Sócrates, é também o que eu penso.
Por conseguinte, meu caro, de jeito nenhum ficará bem para nós afirmar que
a alma é uma espécie de harmonia. Pois desse modo, ao que parece, não nos
poríamos nem de acordo com Homero, o divino poeta, nem mesmo conosco.
É muito certo, disse.
XLIV - Muito bem, falou Sócrates; tudo indica que Harmonia, a divindade
tebana, já se nos tornou propícia. E agora, Cebete, continuou, de que jeito
aplacaremos Cadmo, e com que argumentos?
Tenho certeza de que tu mesmo os encontrarás falou Cebete. Tua
argumentação a respeito da harmonia foi notável; ultrapassou de muito minha
expectativa. Quando Símias te opôs suas dificuldades, eu tinha quase certeza que
não seria possível refutar a teoria por ele apresentada. Daí minha grande
surpresa, por ver que ela não resistiu ao primeiro assalto da tua. Nada me
admiraria, por conseguinte, se acontecesse a mesma coisa com o argumento de
Cadmo.
Não fales demais, caro amigo, interpelou-o Sócrates, para que algum mauolhado
não venha desarticular nosso próximo discurso. Porém deixemos isso a
cargo da divindade; o que nos compete é congregar esforços, como aconselha
Homero, para ver o que disseste tem algum valor. Resume-se no seguinte o que
procuras: Exiges provas de que nossa alma é imperecível e imortal, para que o
filósofo que esteja no ponto de morrer se encoraje e acredite que depois da
morte se sentirá muito melhor no outro mundo do que se vivesse de maneira
diferente até o fim, e não se mostre corajoso por modo estulto e irracional. A
demonstração de que a alma é algo forte e semelhante à divindade, e que existia
antes de nos tornamos homens, não impede, segundo disseste, que tudo isso não
prova que ela seja mortal, mas tão-somente que é relativamente durável e que
antes poderá ter vivido algures um tempo indefinido e aprendido e praticado
muita coisa. Mas nem por isso será imortal. Seu ingresso no corpo poderá ser o
começo de sua própria destruição, uma espécie de doença. Assim, cansada de
carregar o fardo desta vida, acabará por desaparecer no que denominamos
morte Conforme dizes, é indiferente ingressar ela no corpo uma só vez ou muitas,
no que respeite ao medo que todos nós manifestamos. Aliás, justifica-se esse
medo, a menos que se trate de pessoa insensata, por não estarmos em condições
de demonstrar que a alma é imortal. Esse é, mais ou menos, Cebete, o sentido de
tuas palavras. De caso pensado, insisto no mesmo argumentos, para que não nos
escape nenhuma particularidade e possas, caso queiras, acrescentar ou tirar
alguma coisa.
Ao que Cebete respondeu: Por enquanto, nada tenho a acrescentar ou a
retirar; foi isso mesmo que eu disse.
XLV - Durante algum tempo Sócrates se conservou calado, como se
refletisse a sós consigo. Depois continuou: O problema com que te ocupas,
Cebete, é de suma importância; precisaremos investigar a fundo a natureza do
nascimento e da morte. Se ter parecer, vou contar-te o que se passou comigo
nesse particular. Depois, se achares o que eu disser de alguma utilidade para
reforçar a tua tese, podes utilizá-los como bem entenderes.
Não desejo outra coisa, falou Cebete.
Então, ouve o que passo a relatar-te. O fato, Cebete, é quando eu era moço
sentia-me tomado do desejo irresistível de adquirir esse conhecimento a que dão
o nome de História Natural. Afigurava-se-me, realmente, maravilhoso conhecer
a causa de tudo, o porquê do nascimento e da morte de cada coisa, e a razão de
existirem. Vezes sem conta me punha a refletir em todos os sentidos,
inicialmente a respeito de questões como a seguinte: Será quando o calor e o frio
passam por uma espécie de fermentação, conforme alguns afirmam, que se
formam os animais? É por meio do sangue que pensamos? Ou do ar? Ou do fogo?
Ou nada disso estará certo, vindo a ser o cérebro que dá origem às sensações da
vista, do ouvido e do olfato, das quais surgiria a memória e a opinião, e, da
memória e da opinião, uma vez, tornadas calmas, nasceria o conhecimento? De
seguida, ocupei-me com a corrupção das coisas e com as modificações do céu e
da terra, para chegar à conclusão de que nada de proveitoso se tirava de minha
inaptidão para considerações dessa natureza. Vou dar-te uma prova eloquente
disso mesmo. Para as coisas que, segundo meu próprio parecer e de outras
pessoas, eu conhecia bem, a tal ponto me deixaram cego semelhantes
especulações, que cheguei a desaprender até mesmo o que antes eu presumia
conhecer, entre outras, por exemplo, por que o homem cresce. Até então, eu
imaginava ser evidente para toda gente que o homem cre3sce porque come e
bebe; pois quando, pela alimentação, a carne se junta à carne e o osso ao osso, e,
sempre de acordo com o mesmo processo, as demais partes do corpo são
acrescidas de elementos afins, a massa que antes era pequena se torna volumosa,
do que resulta ficar grande o homem pequeno. Era assim que eu pensava. Não te
parece razoável?
Sem dúvida, falou Cebete.
Reflete também no seguinte: Sempre considerei suficiente, quando alguém
parecia alto ao lado de outra pessoa de pequena estatura, dizer que a ultrapassava
de uma cabeça, o mesmo acontecendo com um cavalo em confronto com o
outro. Mais claramente, ainda: o número dez se me afigurava maior do que o
número oito por ajuntar-se dois a este último, como o cúbito duplo seria maior do
que o simples por ultrapassá-lo de metade.
E agora, perguntou Cebete, como te parece?
Como estou longe, por Zeus, continuou, de imaginar que conheço a causa de
tudo isso! Pois nunca chego a compreender, no caso de acrescentar uma unidade
a outra, se é a unidade a que esta última foi acrescentada que se tornou duas, ou
se foi a acrescentada, juntamente com a primeira, que ficaram duas, pelo fato
de uma ter sido acrescentada à outra. Não podia entender que, estando
separadas, cada uma era uma unidade, não duas, e que o fato de ficarem juntas
foi a causa de se tornarem duas, a saber, por terem sido postas lado a lado. Do
mesmo modo, não conseguia convencer-me de ser essa a causa de tornar-se
duas a unidade, a saber: a divisão. Seria precisamente o oposto do que antes nos
ensejara duas unidades: naquela ocasião, foi isso conseguido por se aproximarem
as duas e ficarem lado a lado; agora, porém, a causa foi a separação e o
afastamento delas duas. Assim, também, não acredito saber como se gera a
unidade, nem, para dizer tudo, como nasce ou morre ou existe seja o que for, a
aceitarmos o princípio desse método. Prefiro arriscar-me noutra direção; esse
caminho não me serve.
XLVI - Ao ouvir, porém, certa vez alguém ler num livro de Anaxágora -
segundo dizia - que a mente é organizadora e causa de tudo, fiquei satisfeitíssimo
com semelhante causa, por parecer-me de algum modo, muito certo que a
mente fosse a causa de tudo, tendo imaginado que, a ser assim mesmo, como
coordenadora do Universo, a mente disporia cada coisa particular pela melhor
maneira possível. Se alguém quisesse explicar a causa de como alguma coisa
nasce ou morre ou existe, teria apenas de descobrir qual é a melhor maneira
para ela de existir, sofrer ou produzir seja o que for. Segundo esse critério, só o
que importa ao homem considerar, tanto em relação a si mesmo como a tudo o
mais, é o modo melhor e mais perfeito. Desse jeito, ficaria necessariamente
conhecendo o pior, por ambos serem objeto do mesmo conhecimento. Depois
dessas reflexões, alegrei-me ao pensar que havia encontrado em Anaxágoras um
professor da causa das coisas como havia muito eu desejava, que começaria por
dizer-me se a Terra é chata ou redonda, e depois me explicaria a causa e a
necessidade dessa forma, recorrendo sempre ao princípio do melhor, com
demonstrar que para a Terra era melhor mesmo ser assim. No caso de dizer que
a Terra se encontra no centro, explicaria porque motivo é melhor para ela ficar
no centro. Se ele me demonstrasse esse ponto, decidir-me-ia, de uma vez por
todas, a não procurar outra espécie de causa. O mesmo faria com relação ao Sol,
à Lua, e aos outros astros, no que diz respeito à sua velocidade relativa, o ponto de
conversão e demais acidente a que estão sujeitos, bem como a razão de ser
melhor para cada um deles fazer o que fazem ou sofrer o que sofrem. Um
momento sequer não podia admitir que, depois de afirmar que tudo está
ordenado pela mente, indicasse outra causa que não a de ser melhor para tudo
proceder como procedem. Ao atribuir uma causa particular a cada coisa e ao
conjunto, estava certo de que no mesmo ponto demonstraria o que para cada um
era melhor e em que consistia para todos o bem comum. Por nada do mundo
abriria mão dessa esperança. Por isso, havendo tomado do livro com
sofreguidão, li-o de um fôlego, para poder ficar conhecendo, o mais depressa
possível, tanto o melhor com o pior.
XLVII - Porém, não demorei, companheiro, a cair do alto dessa maravilhosa
expectativa, ao prosseguir na leitura e verificar que o nosso homem não recorria
à mente para nada, nem a qualquer outra causa para a explicação da ordem
natural das coisas, senão só o ar, ao éter, à água, e uma infinidade mais de causas
extravagantes. Quis parecer-me que com ele acontecia como com quem
começasse por declarar que tudo o que Sócrates faz é determinado pela
inteligência, para depois, ao tentar apresentar a causa de cada um dos meus atos,
afirmar, de início, que a razão de encontrar- me sentado agora neste lugar é ter o
corpo composto de ossos e músculos, por serem os ossos duros e separados uns
dos outros pelas articulações, e os músculos de tal modo constituídos que podem
contrair-se ou relaxar-se, e por cobrirem os ossos, juntamente com a carne e a
pele que os envolvem. Sendo móveis os ossos em suas articulações, pela
contração ou relaxamento dos músculos fico em condições de dobrar neste
momento os membros, razão de estar agora sentado aqui com as pernas
flectidas. A mesma coisa se daria, se a respeito de nossa conversação indicasse
como causa a voz, o ar, os sons, e mil outras particularidades do mesmo tipo,
porém se esquecesse de mencionar as verdadeiras causas, a saber: pelo fato de
haverem acordado os Atenienses em condenar-me, pareceu-me, também,
melhor ficar sentado aqui, e mais justo submeter-se neste local à pena cominada.
Sim, é isso, pelo cão! Pois de muito, quero crer, este músculos e estes ossos
estariam em Mégara ou entre o Beócios, movidos pela idéia do melhor, se não
me parecesse muito mais justo e belo, em vez de evadir-me e fugir, submeterme
à pena que a cidade me impusera. É o cúmulo do absurdo dar o nome de
causa a semelhantes coisas. Se alguém dissesse que sem ossos e músculos e tudo
o mais que tenho no corpo eu não seria capaz de pôr em prática nenhuma
resolução, só falaria verdade. Porém afirmar que é por causa disso que eu faço o
que eu faço, e que, assim procedendo, me valho da inteligência, porém não em
virtude da escolha do melhor, é levar ao extremo a imprecisão da linguagem e
revelar-se incapaz de compreender que uma coisa é a verdadeira causa, e outra,
muito diferente, aquilo que sem a causa jamais poderá ser causa. A meu
parecer, é justamente isso o que faz a maioria dos homens, como que a tatear
nas trevas, empregando um termo impróprio e o designando como causa. Daí,
envolver um deles a Terra num turbilhão e deixá-la imóvel debaixo do céu,
enquanto outro a concebe à maneira de uma gamela larga, que tem como
suporte o ar. Quanto à potência que determinou a atual disposição das coisas pela
melhor maneira, nem a procuram nem concebem que seja dotada de algum
poder superior, por se julgarem capazes de encontrar algum Atlante mais forte e
mais imortal do que ela, para manter coeso o conjunto das coisas. Mas que o
bem, de fato, e a necessidade abarquem e liguem todas as coisas, é o que não
admitem de nenhum modo. De minha parte, para ficar sabendo como atua
semelhante causa, de muito bom grado me faria discípulo de quem quer que
fosse. Mas, uma vez que não a conheço nem me acho em condições de descobri-
Ia por mim próprio nem de aprender com outros o que ela seja: queres que te
faça uma descrição completa, Cebete, de como empreendi o segundo roteiro de
navegação para a investigação da causa?
Não há o que eu mais deseje, respondeu.
XLVIII - De seguida, continuou, já cansado de considerar as coisas, houve
que era preciso precatar-me para não acontecer comigo o que se dá com as
pessoas que observam e contemplam o Sol quando há eclipse: por vezes perdem
a vista, se não olham apenas para a imagem dele na água ou nalgum meio
semelhante. Pensei nessa possibilidade e receei ficar com alma inteiramente
cega, se fixasse os olhos nas coisas e procurasse alcançá-las por meio de um dos
sentidos. Pareceu- me aconselhável acolher-me ao pensamento, para nele
contemplar a verdadeira natureza das coisas. É muito provável que minha
comparação claudique um pouco, pois estou longe de admitir que quem
considera as coisas por meio do pensamento só contemple suas imagens, o que
não se dá com que as vê na realidade. De qualquer modo, meu caminho foi esse.
Em cada caso particular, parto sempre do princípio que se me afigura mais forte,
considerando verdadeiro o que com ele concorda, ou se trate de causas ou do que
for, e como falso o que não afina com ele. Vou expor-te com maior clareza
minha maneira de pensar, pois quer parecer-me que não a apreendeste muito
bem.
Não muito, por Zeus, respondeu Cebete.
XLIX - No entanto, prosseguiu, o que eu digo não é novo, mas o que sempre
afirmei, tanto noutras ocasiões como em nossa argumentação recente. Vou
tentar mostrar-te a natureza da causa por mim estudada, voltando a tratar daquilo
mesmo de que tenho falado toda a vida, para, de saída, admitir que existe o belo
em si, e o bem, e o grande, e tudo o mais da mesma espécie. Se me aceitares
esse ponto e concordares que existem, tenho esperança de mostrar-te a causa e
provar a imortalidade da alma.
Admite que já concedi tudo, falou Cebete, para não atrasares ainda mais tua
exposição.
Então, considera o que se segue, continuou, para ver se estás de acordo
comigo. O que me parece é que se existe algo belo além do belo em si, só poderá
ser belo por participar do belo em si. O mesmo afirmo de tudo o mais. Admites
essa espécie de causa?
Admito, respondeu.
Então, já não compreendo, continuou, as outras causas, de pura erudição,
nem consigo explicá-las. E se, para justificar a beleza de alguma coisa, alguém
me falar de sua cor brilhante, ou da forma, ou do que quer que seja, deixo tudo o
mais de lado, que só contribui para atrapalhar-me, e me atenho única e
simplesmente, talvez mesmo com uma boa dose de ingenuidade, ao meu ponto
de vista, a saber, que nada mais a deixa bela senão tão só a presença ou
comunicação daquela beleza em sim, qualquer que seja o meio ou caminho de
se lhe acrescentar. De tudo o mais não faço grande cabedal; o que digo é que é
pela beleza em si que as coisas belas são belas. Na minha opinião, essa é a
maneira mais certa de responder, tanto a mim mesmo como aos outros.
Firmando-me nessa posição, tenho certeza de não vir a cair e de que tanto eu
como qualquer pessoa em idênticas circunstâncias poderá responder com
segurança que é pela beleza que as coisas belas são belas. Não te parece?
Sem dúvida.
Como é por meio da grandeza que o grande é grande e o maior é maior, e
pelo da pequenez que o pequeno é pequeno.
Certo.
Logo, também não concordarias com que dissesse que um homem é maior
do que outro uma cabeça, nem que é menor é também uma cabeça menor do
que o primeiro, porém persistirias na defesa de tua proposição, de que na tua
maneira de pensar tudo o que é grande só pode ser grande por causa da
grandeza, nada mais, sendo esta, a grandeza, que deixa grandes as coisas, como o
pequeno só será pequeno por causa da pequenez, vindo a ser isto mesmo, a
pequenez, que deixa pequeno o pequeno, de medo, quero crer, no caso de
afirmares que um homem é maior ou menor do que o outro uma cabeça, que
pudesse alguém objetar-te, primeiro, que é pela mesma coisa que o maior é
maior e o menor é menor; depois, que, sendo pequena a cabeça, é por meio dela
que o maior é maior, verdadeiro disparate: vir a ser alguém grande por causa do
que é pequeno. Não te arreceias disso?
Sem dúvida, respondeu rindo Cebete.
Como também recearias dizer, continuou, que dez e dois mais do que oito,
sendo essa a razão de ultrapassá-lo, não pela quantidade e por causa da
quantidade, como o cúbito maior é uma metade maior do que o simples, não por
causa da grandeza. O perigo é o mesmo.
Perfeitamente, respondeu.
E então? No caso de uma unidade ser acrescentada a outra, não terás medo
de dizer que essa adição foi a causa de formar-se o dois, ou, na hipótese de ser a
unidade cortada ao meio, que foi a divisão? E não protestarias em altas vozes que
não sabes como uma coisa possa transformar-se noutra, a não ser pela
participação da essência própria da natureza que ela própria participa e que, no
caso concreto da geração do dois, não saberás informar outra causa se não for a
participação da dualidade? Dessa dualidade é que terá de participar o que tiver de
ficar dois, como participará da unidade, tudo o que vier a ser um. Quanto às
divisões e acrescentamentos e demais sutilezas do mesmo gênero, mandarás
todas elas passear, deixando o cuidado da resposta a quem for mais sábio do que
tu. Quanto a ti, de medo, como se diz, da própria sombra e de tua inexperiência, e
firmado naquele pressuposto seguríssimo, responderias daquele jeito. E no caso
de investir o adversário contra tua própria tese, não lhe darias atenção nem
responderias a ele sem primeiro verificares se as consequências de seu postulado
são dissonantes ou harmônicas. E na hipótese de fundamentar tua proposição, fálo-
ias da mesma forma, com admitir um novo princípio, que se te afigurasse
mais valioso, até conseguires resultado satisfatório. Ao contrário dos disputadores,
não confundireis com suas consequências o princípio em discussão, caso
quisesses alcançar alguma realidade. Com esta, ao que parece, é que nenhum
deles se preocupa no mínimo. Com todo o seu saber, o que fazem é baralhar
tudo, muitos anchos de si mesmos. Tu, porém, se te incluis entre os filósofos,
farás o que te disse.
Falaste a pura verdade, disseram a um só tempo, Símias e Cebete.
Equécrates - Por Zeus, Fedão, nem lhe seria possível expressar-se de outro
modo, pois me parece de clareza meridiana semelhante explanação, até mesmo
para quem for dotado de parco entendimento.
Fedão - Perfeitamente, Equécrates; todos os circunstantes foram desse
mesmo parecer.
Equécrates - Que é também o de todos nós que não participamos do colóquio
e te ouvimos neste momento.
L - E depois disso, o que disseram?
Fedão - Segundo creio, depois de lhe concederem esse ponto e de admitirem
a existência real das idéias e que é da sua participação que as diferentes coisas
recebem determinação particular, perguntou Sócrates o seguinte: Se é assim que
falas, continuou, quando dizes que Símias é maior do que Sócrates porém menor
do que Fedão, não equivale isso a dizer que em Símias se encontram ambas:
grandeza e pequenez?
Sem dúvida.
No entanto, admites que a expressão: Símias ultrapassa Sócrates, não deve ser
tomada no sentido literal; não é por sua própria natureza, por ser Símias, que ele o
ultrapassa, mas por sua grandeza ocasional, como não ultrapassa Sócrates por
este ser Sócrates, mas pela pequenez deste, no que entende com a grandeza do
outro.
Certo.
Como também ele não será ultrapassado por Fedão, por este ser Fedão, mas
em virtude da grandeza de Fedão em comparação com a pequenez de Símias.
Isso mesmo.
Desse modo, aplica-se a Símias, a um só tempo, o apelido de grande e de
pequeno, por estar ele a meio caminho dos dois, excedendo com sua grandeza a
pequenez de um deles e reconhecendo no outro a grandeza que vence sua
pequenez. Depois, acrescentou sorrindo: Minha linguagem parece de escrivão;
mas o que eu disse está certo.
Concordou.
Falei desse jeito por desejar que compartilhes de minha maneira de pensar.
O que me parece, é que tanto a grandeza em si mesma não deseja ser grande e
pequena ao mesmo tempo, como a própria grandeza presente em nós não aceita
jamais aceita a pequenez nem consente em ser ultrapassada. De duas uma terá
de ser: ou ela foge e sai do caminho quando dela aproxima seu contrário, a
pequenez, ou, com sua chegada, deixa de existir. O que de nenhum modo deseja,
havendo admitido e recebido a pequenez, sem deixar de ser o que era, continuou
sendo pequeno, ao passo que a grandeza, com ser grande, jamais consente em
ser pequena. O mesmo vale para a pequenez em nós, que nunca se decide a
tornar-se grande ou a ser isso mesmo, o que se também se dá com todos os
contrários, enquanto cada um é o que é, recusam-se a tornar-se e ser ao mesmo
tempo o seu contrário, retirando-se ou desaparecendo quando essa conjuntura se
apresenta.
É exatamente assim que eu penso, observou Cebete.
LI - Nesse instante um dos presentes falou, não saberei dizer com segurança
quem tivesse sido: Pelos deuses! Em nossa prática de há pouco não foi dito
justamente o oposto do que é afirmado agora, que do maior nasce o menor, e
vice-versa, do menor o maior, e que essa é, precisamente, a maneira de
nascerem os contrários, de seus respectivos contrários? No entanto, quer parecerme
que afirmaste não ser isso possível.
Sócrates, que se inclinara para melhor ouvi-lo, então falou: A observação é
corajosa, porém não apanhaste bem a diferença entre o que foi dito antes e a
presente afirmativa. O que então dissemos é que a coisa contrário nasce da que
lhe é contrária, porém agora que o contrário jamais admite ser seu próprio
contrário, nem em nós nem na natureza. Naquela ocasião, meu caro, falávamos
de coisa que têm contrários; agora, porém tratamos dos próprios contrários
inerentes as coisas, cuja presença empresta a todas a respectiva designação. Ora,
o que afirmamos é que esses contrários, justamente, não admitem transição de
um para outro.
Ao dizer isso, voltou-se para Cebete e lhe falou: Porventura, Cebete, lhe disse,
deixou-te atrapalhado a objeção deste aqui?
Não é o meu caso, respondeu Cebete, conquanto não possa dizer que tudo
para mim esteja claro.
Mas o fato, prosseguiu, é que já assentamos que nunca o contrário pode ser o
contrário de si mesmo.
Sem a mínima restrição, foi a sua resposta.
LII - Então, considera também o seguinte, continuou, para ver se estás de
acordo comigo. Não há alguma coisa a que damos o nome de quente, e outra que
denominamos frio?
Sem dúvida.
E serão, porventura, o mesmo que a neve e o fogo?
Não, por Zeus; nunca afirmei semelhante coisa.
Logo, o quente não é a mesma coisa que o fogo, nem o frio o mesmo que a
neve.
Exato.
Mas, estou certo de que também admires que nunca poderá a neve, como
neve, conforme dissemos há pouco, depois de receber o calor, continuar a ser o
que era: neve com calor. Com a aproximação do calor, ou ela se retira ou vem a
fenecer.
Perfeitamente.
Tal qual como o fogo: com a chegada do frio, retira-se ou perece; de jeito
nenhum, depois de receber o frio, se atreveria a ser o que antes era: fogo, a um
tempo, e frio.
Falaste com muito acerto, observou.
Pode acontecer, continuou, nalguns exemplos desse tipo, que não somente a
idéia em si mesma tenha o direito de conservar eternamente o mesmo nome,
como também algo diferente que, sem ser daquela idéia, apresenta-se, enquanto
existe, com sua forma. E possível que com o seguinte exemplo eu deixe mais
claro meu pensamento. O número ímpar terá de conservar sempre esse nome
com o que designamos. Ou não?
Perfeitamente.
Mas, é só com ele que isso acontece - é o que pergunto - ou com mais
alguma coisa que, sem ser, de fato, o ímpar em si mesmo, ao lado do seu próprio
nome terá forçosamente de ser sempre denominado dessa maneira, por ser de
tal natureza, que nunca pode dispensar o ímpar? Com isso, quero referir-me ao
que se passa com o conceito da tríade e muitos outros da mesma espécie.
Considera apenas o número três. Não te parece que ele precisará sempre ser
designado, a um só tempo, pelo seu próprio nome e pelo do ímpar, apesar de não
ser o nome ímpar a mesma coisa que três? Seja como for, de tal modo é
constituída a natureza do três, do cinco e de toda uma metade dos números, que
apesar de cada um deles não ser a mesma coisa que o ímpar, sempre terão de
ser ímpares. O mesmo se passa com o dois, o quatro e toda a outra metade dos
números, que, sem serem o par, sempre terão de ser partes. Admites isso ou não?
Como não admitir? Foi a sua resposta.
Presta agora atenção, disse, ao que me disponho a demonstrar. Trata-se do
seguinte: é fora de dúvida que não são apenas os contrários que se excluem
reciprocamente, mas todas as coisas que, sem serem contrárias entre si, não
admitem a idéia contrária da que lhes é própria, à aproximação da qual ou
cedem o lugar ou vêm a perecer. Pois já não dissemos que o número três
primeiro deixará de existir ou sofrerá seja o que for, antes de vir a ficar par, por
ser, de fato, o que é, precisamente três?
É muito certo, falou Cebete.
No entanto, continuou, os números dois e três não são contrários entre si.
Nunca.
Logo, não são apenas as idéias contrárias que não admitem a aproximação
recíproca; há outras, também, que não aceitam essa aproximação dos contrários.
É muito certo o que afirmas, respondeu.
LIII - E não acharias bom, continuou, determinarmos, na medida do possível,
quais essas idéias?
Perfeitamente.
Não serão, Cebete, prosseguiu, as que forçam as coisas de que elas se
apoderam a conservar tanto a sua própria forma como a que sempre lhes é
contrária?
Que queres dizer com isso?
O que declaramos neste momento. Como muito bem sabes, todas as coisas de
que se apossa a idéia do número três, tanto terão, por força, de ser três como
ímpares.
É muito certo.
Ora bem; o que dizemos é que a idéia contrária à forma eu a constitui nunca
pode entrar nela.
Nunca, de fato.
O que a constitui é a idéia do ímpar, não é isso mesmo?
Certo.
Como o seu contrário é a idéia do par.
Sem dúvida.
Sendo assim, no três jamais entrará a idéia de par.
Nunca.
Pelo simples fato de o três não participar do par.
Isso mesmo.
Visto ser ímpar.
Exatamente.
Pois era isso, precisamente, que eu queria determinar: as coisas que, sem
serem contrárias entre si, não admitem o seu contrário. Será o caso do três quem,
sem ser o contrário do par, de forma alguma o aceita, pois ele lhe opõe sempre o
seu contrário, como faz o dois com o ímpar, o fogo com o frio e um infinito mais
de exemplos. Dize-me agora se não concluirias que não é apenas o contrário que
não recebe o seu contrário, porém tudo o que leva a idéia do contrário da coisa
que o recebe, não admite nesta o contrário daquilo que ele leva. Recapitulemos
tudo o que dissemos até aqui, pois não há mal em ouvir a mesma coisa várias
vezes: O número cinco não admite a idéia de par, nem o dez, o dobro daquele, a
de ímpar. Por sua vez, o duplo é o contrário de outra coisa, porém não admite a
idéia do ímpar, como também não a admitem os números sesquiálteros, o meio e
outras frações do mesmo tipo, nem a idéia de todo, de terço e de tudo o mais da
mesma natureza, se é que me acompanhas e estás de acordo comigo.
Não somente estou de inteiro acordo, disse, como te acompanho.
LIV - Então, repete tudo isso do começo, continuou, porém não me responda
com minhas próprias palavras, mas de outra forma, tomando-me como modelo.
O que digo é que, além da resposta certa que eu apresentei no começo,
encontrou outra de não menor confiança no que ficou dito depois. De fato, se me
perguntasses: Que precisas haver no corpo para que ele fique quente? Não te
daria a resposta, certa, sem dúvida, porém ingênua, que é o calor, porém outra
muito mais aprimorada, com base em nossa exposição anterior: fogo. Como
também se me perguntasses o que precisa haver no corpo, para que ele adoeça,
não responderia que é a doença, porém alguma febre. E no caso de perguntares
o que precisa haver num número para ser ímpar, não me referira a imparidade,
mas à unidade, e assim sucessivamente. Agora vê se apanhaste bem meu
pensamento.
À maravilha, respondeu.
Então, me digas, continuou, que precisa haver no corpo para que ele viva?
Alma, respondeu.
E sempre terá de ser assim?
Por que não? Foi sua resposta.
Logo, tudo o de que a alma se apodera, a isso ela dá vida?
É o que ela faz, de fato, respondeu.
E porventura haverá alguma coisa contrária à vida? Ou não há?
Sem dúvida, respondeu.
Que é?
A morte.
De onde vem, que a alma nunca poderá aceitar o contrário daquilo que ela
sempre traz consigo; é o que se conclui de tudo o que dissemos até agora.
Conclusão certíssima, respondeu Cebete.
LV - E então? O que não admite a idéia do par, que nome lhe demos agora
mesmo?
Ímpar, respondeu.
E o que não recebe o justo, ou não recebe o harmônico?
Desarmônico, disse, ou injusto.
Muito bem. E o que não recebe a morte, como denominaremos?
Imortal, foi a sua resposta.
Ora, a alma não recebe a morte.
Não.
A alma é, pois, imortal?
Imortal.
Muito bem. Podemos afirmar, por conseguinte, que isso ficou demonstrado?
Ou como te parece?
Ficou demonstrado à saciedade, Sócrates.
E agora, Cebete, continuou: se o ímpar fosse indestrutível por força das
coisas, não teria também de ser indestrutível o três?
Como não?
E se o não- quente também fosse por necessidade indestrutível, sempre que
alguém aproximasse da neve o fogo, não se retiraria a neve intacta e sem
derreter-se? Não pereceria, é claro, e por mais que ficasse exposta ao calor, não
o receberia.
É muito certo, respondeu.
Como também, segundo penso, se o não-frio fosse indestrutível por natureza,
e alguém aproximasse do fogo o frio, jamais o fogo se apagaria ou viria a
fenecer, porém afastar-se-ia incólume.
Necessariamente, respondeu.
E não será também preciso falarmos nesses mesmo termos no que entende
com o mortal? Se o imortal também for imperecível, a alma, sempre que a
morte se aproximar dela, não poderá morrer; pois de acordo com o que dissemos
antes, ela não admitirá a morte nem virá a morrer, da mesma forma que o três,
conforme vimos, nunca poderá ser par, e com ele o ímpar, nem o fogo ficará
frio nem o calor que há no fogo. Porém o que impede - poderia alguém objetar -
que o ímpar, muito embora não fique par à aproximação do par, e sobre isso, já
nos declaramos de acordo, venha, de fato, a perecer, por transformar-se em par?
A quem tal objetasse, não poderíamos responder que não perece, pois o ímpar
não é indestrutível. Porém se isso houvesse sido aceito antes por nós, fora fácil
retorquir que à aproximação do para o ímpar e o três se retiram. Da mesma
maneira responderíamos com respeito ao calor, ao fogo e a tudo o mais. Ou não?
Sem dúvida.
Sendo assim, agora, com relação ao imortal, uma vez admitido por nós dois
que também é imperecível, a alma, terá de ser por força imperecível. Caso
contrário, precisaríamos lançar mão de outro argumento.
Não por causa disso, retorquiu; dificilmente poderia haver que não admitisse
a destruição, se o imortal, com ser eterno, fosse passível de acabar.
LVI - Quanto a Deus, falou Sócrates, ao que suponho, e à idéia da vida e a
tudo o mais que possa haver de imortal, todos estão de acordo em que nunca
podem parecer.
Sim, por Zeus, todos os homens, respondeu, e, com maioria de razões, os
próprios deuses.
Era, uma vez que o imortal é imperecível, a alma, sendo imortal, não terá de
ser, da mesma forma, imperecível?
Forçosamente.
Logo, como parece , ao aproximar-se dos homens a morte, o que neles for
mortal terá de perecer, enquanto sua porção imortal cede o lugar à morte e
continua sã e incorruptível.
Claro.
É certíssimo, por conseguinte, Cebete, continuou, ser a alma imortal e
imperecível, e existirem realmente nossas almas no Hades.
Enquanto a mim, Sócrates, falou Cebete, nada tenho a objetar contra teus
argumentos, nem o que alegar para não admiti-los. Porém no caso de Símias ou
qualquer outro querer dizer alguma coisa, fará bem em não se conservar calado,
pois não sei que melhor oportunidade do que esta poderá encontrar quem se
disponha a falar ou a ouvir seja o que for a respeito destas questões.
Eu também, falou Símias, não vejo razão para não aceitar o que foi dito.
Dada, porém, a grandeza da matéria e por não confiar muito na fraqueza de
matéria e por não confiar muito na fraqueza humana, sou forçado a declarar que
ainda alimento algumas dúvidas com respeito ao que foi explanado.
Não é só isso, Símias, falou Sócrates como muito bem te exprimiste, até
mesmo nossas proposições iniciais, por dignas de confiança que pareçam,
precisam ser consideradas mais a fundo, e, uma vez suficientemente analisadas,
estou certo de que acompanhareis a argumentação, na medida da capacidade de
compreensão do homem, até que, tudo esclarecido, nada mais tenhais a
investigar.
É muito certo o que dizes, respondeu.
LVII - Porém devemos senhores, considerar também o seguinte: se a alma
for imortal, exigirá cuidados de nossa parte não apenas nesta porção do tempo
que denominamos vida, senão o tempo todo em universal, parecendo que se
expõe a um grande perigo quem não atender esse aspecto da questão. Pois se a
morte fosse o fim de tudo, que imensa vantagem não seria para os desonestos,
com a morte livrarem-se do corpo e da ruindade muito própria juntamente com
a alma? Agora, porém, que se nos revelou imortal, não resta à alma outra
possibilidade, se não for tomar-se, quanto possível, melhor e mais sensata. Ao
chegar ao Hades, nada mais leva consigo a não ser a instrução e a educação,
justamente, ao que se diz, o que mais favorece ou prejudica o morto desde o
início de sua viagem para lá. O que contam é o seguinte: ou morrer alguém, o
demónio que em vida lhe tocou por sorte se encarrega de levá-lo a um lugar em
que se reúnem os mortos para serem julgados e de onde são conduzidos para o
Hades com guias incumbidos de indicar-lhes o caminho. Depois de terem o
destino merecido e de lá permanecerem o tempo indispensável, outro guia os traz
de volta, após numerosos e longos períodos de tempo. Esse caminho não é o que
diz Télefo, de Ésquilo, ao afirmar que o caminho do Hades é simples; a meu ver
nem é simples nem único. Se fosse o caso, seria dispensável guia, pois ninguém
se perde onde a estrada é uma só. O que parece é que ele é cheio de voltas e
bifurcações. Digo isso com base nos ritos sagrados e cerimônias aqui em uso. De
qualquer forma, a alma prudente e moderada acompanha seu guia,
perfeitamente consciente do que se passa com ela; mas, como disse há pouco, a
que se agarra avidamente ao corpo esvoaça durante muito tempo em torno dele
e do mundo visível, e depois de grande relutância e de sofrimentos sem conta, é
por fim arrastada dali, à força e com dificuldade pelo demônio incumbido de
conduzi-la. Uma vez alcançado o lugar em que se encontram, outras almas, a
que se acha impura pela prática do mal, de homicídios injustos ou de crimes
semelhantes, irmãos daqueles e iguais aos que soem praticar almas irmãs, de
umas alma como essa todas se afastam, evitam na, não havendo guia nem
companheiro de jornada que com ela se associe. Tomada de grande
perplexidade, vagueia por todos os lugares até escoar-se certo tempo, depois do
que a arrasta a Necessidade para a moradia que lhe foi determinada. A que
atravessou a vida com pureza e moderação e alcançou deuses por guias e
companheiros de jornada, obtém moradia apropriada.
LVIII - A Terra apresenta um sem- número de lugares maravilhosos, não
sendo nem de tão extensa nem da forma como a imaginam as que se
comprazem em discorrer a seu respeito, conforme alguém mo demonstrou.
Nessa altura falou Símias: Que queres dizer com isso, Sócrates? Sobre a Terra
eu também já ouvi dizerem muita coisa; porém não o de que te mostras
convencido. De muito bom grado te ouviria falar a esse respeito.
Para fazer essa descrição, Símias, não me parece necessária a arte de
Glauco. Mas o que se me afigura mais difícil do que a arte de Glauco é provar a
sua veracidade. É possível, até, que me falte capacidade para tanto; porém
mesmo que a tivesse, o pouquinho de vida que me resta, Símias, não chegaria
para tão longa exposição. Contudo não vejo impedimento em expor-te a idéia
que faço da forma da Terra e de suas diferentes regiões.
Será o suficiente, falou Símias.
Para começar, principiou, fiquei convencido de que, se a Terra é de forma
esférica e está colocada no meio do céu, para não cair não precisará nem de ar
nem de qualquer outra necessidade da mesma natureza: por que para sustentarse
é suficiente a perfeita uniformidade do céu e seu equilíbrio natural. Pois uma
coisa em equilíbrio natural. Pois uma coisa em equilíbrio no meio de qualquer
elemento homogêneo, não se inclinará, no mínimo, para nenhum lado, mas se
conservará sempre fixa e no mesmo estado. Foi esse o primeiro ponto,
arrematou, que passei a admitir.
E com razão, observou Símias.
Ao depois, continuou, que também se trata de algo imensamente grande e
que nós outros, moradores da região que vai do Fásis às Colunas da Hércules,
ocupamos uma porção insignificante da terra, em torno do mar à feição de
formigas e rãs na beira de um charco. É que por toda a Terra há muitas
concavidades, de forma e tamanho variáveis, para as quais converge água, vapor
e ar. Porém a própria terra se acha pura no céu puro, onde estão os astros,
denominado éter por quantos costumam discorrer sobre essas questões, cuja
borra, precisamente, é tudo aquilo que não pára de depositar-se nas cavidades da
terra. Quanto a nós, por não percebemos que moramos nessas concavidades,
imaginamos viver em cima da Terra como se daria com quem morasse no meio
do mar fundo e pensasse estar na superfície, e vendo através da água o Sol e os
outros astros, tomaria o mar pelo céu. Por indolência e fraqueza muito próprias,
nunca subiu até o espelho da água, nem viu nunca, depois de emergir do mar e
de levantar a cabeça fora da água na direção desses lugares, quanto são mais
puros e mais lindos do que o outro, o que também não poderia ter ouvido de
nenhuma testemunha ocular. É exatamente o que se dá conosco. Habitantes de
uma dessa concavidades da Terra, imaginamos morar em cima dela, e damos
ao ar o nome de céu, como se o ar fosse o próprio céu em que se movimentam
os astros. É igualzinha nossa situação: por indolência e fraqueza, não somos
capazes de atingir o limite extremo do ar. Pois no caso de chegar alguém ao
cimo ou de adquirir asas e de voar, emergiria e passaria a ver como os peixes
aqui de baixo quando põem a cabeça fora da água e vêem o que se passa entre
nós: de igual modo veria o que há por lá, e no caso de agüentar sua natureza por
algum tempo semelhante vista, reconheceria ser aquele o verdadeiro céu, a
verdadeira luz e a verdadeira terra. Sim, porque esta nossa terra, as pedras e toda
a região que nos circunda estão estragadas e corroídas, tal como corroído está
pela salsugem tudo o que há no mar. Nada cresce no mar digno de menção, nem
há nada perfeito, por assim dizer; apenas cavernas, areia, lama a perder de vista
e lodo por onde quer que haja terra, nada, em suma, que suporte cotejo com as
coisas belas de nosso mundo. Mas aquelas, por sua vez, em confronto com as
nossas, de muito as ultrapassam. Se fosse oportuno, contar-vos-ia um belo mito,
Símias, digno de ser ouvido, de como é constituída essa terra situada embaixo do
céu.
Mas nem há dúvida, Sócrates, falou Símias; escutaremos teu mito com o
maior prazer.
LIX - O que dizem, companheiro, para começar, é que essa terra fosse vista
de cima por alguém, pareceria um desses balões de couro de doze peças de
cores diferentes, de que são simples amostras as cores conhecidas entre nós que
os pintores empregam. Toda aquela terra é assim, porém de cores muito mais
pura e brilhantes; uma parte é de cor é púrpura e admiravelmente bela; outra é
dourada; outra, ainda, com ser branca, é mais alva do que o giz e a neve, o
mesmo acontecendo com todas as cores de que é feita, em muito maior número
e mais belas do que quantas possamos já ter visto. Pois até mesmo as
concavidades da terra, estando cheias de ar e de água, mostram uma cor de
brilho especial, resultante da mistura de todas as cores, de forma que a Terra
apresenta colorido de uniforme variedade. Nessa terra assim constituída, tudo
cresce nas mesmas proporções: árvores, flores ou frutos. Comas montanhas dáse
o mesmo; as pedras, relativamente, são mais macias e translúcidas e de cores
muito lindas, das quais são parcela insignificante nossas pedrazinhas tão
apreciadas: sardônicas, jaspe e esmeraldas, e todas as outras da mesma natureza.
As de lá são todas desse jeito e ainda mais belas. A causa disso, vamos encontrála
no fato de serem puras aquelas pedras e não ficarem estragadas nem
corroídas, como as nossas, pela putrefação e pala salsugem que convergem para
os lugares cá de baixo e que deformam e deixam doente não somente as pedras
e o solo, como também os animais e as plantas. Tudo isso enfeita aquela terra,
também ouro e prata e o que mais houver do mesmo gênero, de tanta
refulgência tudo em tão grande cópia espalhado pela vastidão da terra que sua
vista é verdadeiramente edificante. Existem nela animais em profusão, e
também em parte nas margens do ar, como nós moramos nas do mar, em parte
nas ilhas cercadas de ar, perto dos continentes. Numa palavra: o ar para eles é
com a água e o mar para nossas necessidades, assim como para eles o éter é o
que para nós é o ar. As estações entre eles são de tal modo temperadas, que
ninguém cai doente, vivendo todos muito mais tempo do que os homens cá de
baixo. Quanto à vista, o ouvido o pensamento e demais atributos desse gênero,
eles nos ultrapassam na mesma proporção em que o ar vence em pureza a água
e o éter o próprio ar. Há também entre eles templos e bosques sagrados, nos
quais viver efetivamente as divindades, bem como vozes, profecias e aparições
dos deuses, que é como se comunicam com eles, de rosto a rosto. Ademais,
vêem o sol, a lua e as estrelas com são na realidade, andando a par com tudo isso
o restante de sua bem-aventurança.
LX - Assim é a natureza da terra em seu conjunto e das coisas que a
circundam. Nas entranhas da terra, por todo o seu contorno notam-se numerosas
concavidades, algumas mais profundas e patentes do que esta em que moramos,
outras também profundas, porém com entrada mais angusta do que a nossa,
havendo, ainda, umas tantas de menor fundura, porém mais largas do que esta.
Todas essas regiões se comunicam entre si em muitos lugares por passagens
subterrâneas, de largura variável, além de possuírem outras vias de acesso. Muita
água corre de uma para outra, como nos grandes vasos, havendo, outrossim,
embaixo da terra rios perenes de grandeza descomunal, de água quente e fria, e
também muito fogo e grandes rios de fogo, bem como correntes de lama líquida,
ora mais limpa, ora mais suja, tal como antes de lava os rios de lama da Sicília, e
depois a própria lava. Essas diferentes regiões se enchem de semelhante matéria,
de acordo com a direção ocasional da corrente. Essas águas se movimentam
para cima e para baixo, como um pêndulo colocado no interior da terra.
Semelhante oscilação deve provir do seguinte: Entre as aberturas da terra, uma
há particularmente grande, que a atravessa em toda a sua extensão e a que se
refere Homero nos seguintes termos:
Essa voragem profunda que em baixo da terra se encontra, e que por ele
mesmo e muitos outros poetas é denominada Tártaro. É para essa abertura que
confluem todos os rios, como é dela, também, que todos partem, adquirindo cada
um as propriedades do terreno por onde passam. A razão de saírem de todos os
rios dessa abertura e de voltarem para ela, é carecerem suas águas de fundo e de
base; daí oscilarem e flutuarem para cima e para baixo. Concorrem para o
mesmo efeito o ar e o vento que as envolvem, por acompanhá-las tanto quando
se precipitam para as regiões do outro lado da terra como quando se dirigem
para o lado de cá. E assim como o sopro de quem respira se encontra em
constante movimento, na inspiração e na expiração, do mesmo modo o sopro
predominante naquelas regiões, juntamente com as águas, quando entram e
quando saem, produz ventos de irresistível violência. Ao se dirigirem as águas
para os lugares que denominamos de baixo, afluem para os leitos das correntes
desse lado e os enchem, como nos sistemas de irrigação; quando, inversamente,
os abandonam e retornam para cá, voltam a encher os deste lado. Uma vez
cheios, correm pelos canais e pela terra, seguindo as vias naturais do solo e
passam a formar lagos, mares, rios e fontes. De lá, voltando a mergulhar na
terra, depois de uma parte das águas circular por maios número de regiões e
mais extensas, enquanto outras fazem trajeto pequeno em menos lugares,
lançam-se outra vez no Tártaro, algumas muito mais abaixo do nível em que
corriam, outras um pouco menos, conquanto desemboquem todas muito abaixo
do ponto de partida. Alguns rios irrompem do lado oposto da saída, outros do
mesmo lado; sim, casos há de descreverem um círculo completo: enrolando-se
uma ou mais vezes em torno da terra, à feição de serpentes, descem o mais
possível para de novo se lançarem no Tártaro. Os rios de ambos os lados podem
baixar até o centro, porém não ultrapassá-lo, pois de cada lado a margem desses
rios é de aclive acentuado.
LXI - Há muitas outras caudais do mais variado aspecto, porém nessa
multidão de rios há quatro, particularmente, dos quais o maior e mais afastado do
centro, denominado Oceano, circunda a Terra inteira. De fronte deste e em
sentido contrário deflui o Aqueronte, que além de atravessar muitas regiões
desertas, corre por baixo da terra, até alcançar a Lagoa Aquerúsia, para onde
vão as almas da maioria dos mortos, as quais, depois de ali permanecerem o
tempo marcado pelo destino, umas mais outras menos, são reenviadas para
renascerem em animais. O terceiro rio irrompe dentre os dois primeiros, para
lançar-se, perto de sua origem, num lugar amplo e cheio de fogo, onde forma
um lago maior do que o nosso mar, de água e lama ferventes. Daí, torvo de tanta
lama, descreve um círculo e depois de contornar a terra e atravessar outros
lugares, atinge o limite extremo da Lagoa Aquerúsia, sem que suas águas se
misturem com as desta. Por fim, depois de muitas voltas sempre dentro da terra
lança-se na porção mais baixa do Tártaro. Esse é que tem o nome de
Piriflegetonte, cujas lavas jogam partículas incandescentes em diversos pontos
da superfície da terra. Defronte dele, por sua vez, desemboca o quarto rio, a
princípio numa região selvática e pavorosa, e, ao que se diz, toda ela de colorido
azul escuro, denominada Estígia, sendo chamada Estige a lagoa em que ele vem
lançar-se. Depois de nela cair e adquirirem suas águas propriedades terríveis,
afunda pela terra, traçando voltas sem conta em sentido contrário às do
Piriflegetonte, com o qual vai defrontar-se no lado oposto da lagoa Aquerúsia.
Suas águas, também, não se misturam com as outras, vindo ele a desaguar no
Tártaro defronte do Piriflegetonte. O nome desse rio, no dizer dos poetas, é
Cócito.
LXII - Sendo essa a disposição natural dos rios, quando os mortos chegam ao
local determinado para cada um o seu demônio particular, antes de mais nada
são julgados, tanto os que levaram vida bela e santa como os que viveram mal.
Os classificados como de procedimento mediano, dirigem-se para o Aqueronte e
sobem para as barcas que lhes são destinadas e que os transportam para a lagoa.
Aí passam a residir e se purificam, e no caso de haverem cometido alguma falta,
cumprem a pena imposta e são absolvidos ou recompensados, de acordo com o
mérito de cada um. Os reconhecidamente incuráveis, por causa da enormidade
de seus crimes, roubos de templos, repetidos e graves, homicídios iníquos e
contra a lei, e muitos outros do mesmo tipo que se cometem por aí: esses lançaos
no Tártaro a sorte merecida, de onde não sairão nunca mais. Os autores de
faltas sanáveis, embora graves - seria o caso dos que, num momento de cólera,
usaram de violência contra o pai ou a mãe, mas que se arrependeram o resto da
vida, ou os que se tornaram homicidas por idênticos motivos - todos terão
fatalmente de ser lançados o Tártaro. Porém m ano depois de ali caírem, as
ondas jogam os assassinos para o Cócito, e os culpados de violência contra o pai e
a mãe para o Piriflegetonte. Arrastados, assim, pela correnteza, quando atingem
a Lagoa Aquerúsia, alguns chamam a vozes os que eles mesmos mataram,
outros as vítimas de suas violências; e ao acorrerem todos a seus brados,
imploram permissão de passar para a lagoa e de serem recebidos. Se conseguem
com eles que os atendam, ingressam na lagoa, terminando logo ali seus
sofrimentos; caso contrário, são mais uma vez levados para o Tártaro e deste,
novamente, para os rios, prolongando-se, dessa forma, o castigo até conseguirem
o perdão de suas vítimas. Essa pena lhes é imposta pelos juízes. Por último, os
que são reconhecidos como de vida eminentemente santa, ficam dispensados de
permanecer nessas moradas subterrâneas e, como egressos da prisão atingem, as
regiões puras e passam a residir na terra. Entre esses, os que já se purificaram
suficientemente por meio da filosofia, vivem daí por diante sem corpo e vão para
moradias ainda mais belas do que as outras. Desisto de descrevê-las, à uma, por
não ser fácil tarefa, à outras, por não dispor agora de tempo para tanto. Do que
vos expusemos, Símias, precisamos tudo fazer para em vida adquirir virtude e
sabedoria, pois bela é a recompensa e infinitamente grande a esperança.
LXIII - Afirmar, de modo positivo, que tudo seja como acabei de expor, não
é próprio de homem sensato; mas que deve ser assim mesmo ou quase assim no
que diz respeito a nossas almas e suas moradas, sendo a alma imortal como se
nos revelou, é proposição que me parece digna de fé e muito própria para
recompensar-nos do risco em que incorremos por aceitá-la como tal. É um belo
risco, eis o que precisamos dizer a nós mesmos à guisa da formula de
encantamento. Essa é a razão de me ter alongado neste mito. Confiado nele; é
que pode tranqüilizar-se com relação a sua alma o homem que passou a vida
sem dar o menor apreço aos prazeres do corpo e aos cuidados especiais que este
requer, por considerá-los estranhos a si mesmo e capazes de produzir,
justamente, o efeito oposto. Todo entregue aos deleites da instrução, com os quais
adornava a alma, não como se o fizesse com algo estranho a ela, porém como
jóias da mais feliz indicação: temperança, justiça, coragem, nobreza e verdade,
espera o momento de partir para o Hades quando o destino o convocar. Vós
também, Símias e Cebete, acrescentou, e todos os outros, tereis de fazer mais
tarde essa viagem, cada um no seu tempo. A mim, porém, para falar como herói
trágico, agora mesmo chama- me o destino. Mas esta quase na hora de tomar o
banho. Acho melhor fazer isso antes de beber o veneno, para não dar às
mulheres o trabalho de lavar o cadáver.
LXIV - Depois de dizer essas palavras, falou Critão: Está bem, Sócrates;
porém que determinações me deixas ou a estes aqui, a respeito de teus filhos, ou
o que mais poderemos fazer por amor de ti, que nos fora grato executar?
O que sempre vos digo, Critão, foi a sua resposta; nada tenho a acrescentar:
se cuidardes de vós mesmos, tudo o que fizerdes será tanto por amor de mim e
dos meus como de todos, ainda mesmo que nada me tivésseis prometido neste
momento. Porém no caso de vos descuidardes de vós mesmos e de não
orientardes a vida como que no rastro do que vos disse agora e no passado, por
mais numerosos e solenes que fossem vossos juramentos neste instante, não
avançareis um único passo.
Quanto a isso, respondeu, esforçar-nos-emos para viver dessa maneira. Mas,
como devemos sepultar-te?
Como quiserdes, disse; basta que segureis de verdade e que eu não vos
escape.
Depois, sorriu de mansinho e disse, olhando para o nosso lado: Não consigo,
senhores, convencer Critão de que eu sou o Sócrates que neste momento
conversa com ele e comenta seus argumentos; toma-me por quem ele irá ver
morto dentro de pouco. Por isso pergunta como deverá sepultar-me. Quanto ao
que vos tenho dito tantas vezes, que depois de beber o veneno não ficarei
convosco mais irei compartilhar da dita dos bem aventurados, ele acha que eu só
falo assim para tranqüilizar-vos e a mim também. Servime, pois, de fiador junto
de Critão, porém que seja essa fiança o oposto da que ele prestou perante os
juízes. Empenhou, então, a palavra em como eu ficaria; por vossa vez, afirmailhe,
que não ficarei depois de morto, porém sairei daqui e partirei, para que ele
se mostre mais paciente e não se aflija tanto por minha causa, quando vir
queimarem ou enterrarem meu corpo, no pressuposto de que eu esteja sofrendo
enormemente, nem diga nos meus funerais que expõe Sócrates, ou o carrega, ou
o sepulta. Fica sabendo, continuou, meu admirável Critão, que a imprecisão da
linguagem, além de ser um defeito em si mesma, produz mal às almas. Importa
criares coragem e dizer que é meu corpo que vais enterrar; depois sepulta- o
como te aprouver e como te parecer mais de acordo com as leis.
LXV - Tendo acabado de falar, levantou-se e foi para outro compartimento,
a fim de banhar-se. Critão o acompanhou; a nós mandou que esperássemos. Ali
ficamos, então, a conversar e comentar tudo o que ele dissera e a discorrer sobre
o nosso grande infortúnio. Sentíamos, em verdade, como quem houvesse perdido
o pai e tivesse de ficar órfão para o resto da vida. Depois de tomar banho,
trouxeram- lhe os filhos - dois ainda eram pequenos; o outro, mais crescido. -
Chegaram também as mulheres de casa, com as quais ele conversou na frente
de Critão, e depois de lhes haver feito certas recomendações, pediu que
retirassem dali as mulheres e os meninos e veio para o nosso lado. O sol já estava
quase a desaparecer, pois Sócrates havia ficado lá dentro bastante tempo. Ao vir
do banho, sentouse, porém não conversou muito. Achegou-se-lhe o comissário
dos Onze, que lhe disse:
Sócrates, falou, de ti não terei de queixar- me como dos outros, que se
zangam comigo e rompem em palavras e pragas, quando os convido a tomar o
veneno por determinação superior. No teu caso, pelo contrário, durante todo este
tempo e em várias outras oportunidades, pude reconhecer em ti o homem mais
nobre, mais delicado e melhor de quantos para aqui têm vindo. Hoje,
especialmente, tenho certeza de que não te zangarás comigo, pois sabes muito
bem que é dos outros a culpa. E agora, já que ficaste ciente do que vim anunciarte.
Adeus; suporta o inevitável da melhor maneira possível.
E desatando a chorar, deu as costas e retirou-se. Sócrates olhou para ele disse:
Adeus, também para ti; faremos isso mesmo.
Depois, voltando-se para o nosso lado: Que homem delicado! Disse. Durante
todo este tempo, vinha sempre ver-me e várias vezes conversou comigo.
Excelente criatura. Agora mesmo, quanta generosidade revela com esse choro
por minha causa! Porém vamos, Critão; obedeçamos-lhe; tragam logo o veneno,
se estiver pronto; senão, cuide de preparálo o encarregado disso.
Critão observou: O que eu acho, Sócrates, lhe disse, é que o sol ainda está por
cima das montanhas; não baixou de todo. Sei também que muitos tomaram o
veneno bem depois da intimação e de comerem e beberem à farta; sim, alguns
mesmo depois de relações amorosas com que lhe apetecesse. Não te apresses;
temos tempo.
E Sócrates: É natural, Critão, assim falou, que esses tais procedessem
conforme disseste, por imaginarem que disse lhes adviria alguma vantagem. Mas
é também natural não proceder eu dessa maneira, pois não vejo o que posso vir a
lucrar em beber o veneno um pouco mais tarde, se não for tornar-me ridículo a
meus próprios olhos, por agarrar-me dessa maneira à vida e tentar economizar o
que já não existe. Vamos, continuou: obedece- me e só faças o que eu digo.
LXVI - Ouvindo-o, Critão fez sinal ao menino que se encontrava mais perto.
Este saiu e voltou pouco depois em companhia do encarregado de lhe dar o
veneno, que já o trazia espremido na taça. Ao ver o homem, Sócrates perguntoulhe.
E agora, meu caro: já que entendes destas coisas, que precisarei fazer?
Nada mais, respondeu, do que andar depois de beber, até sentires peso nas
pernas, e em seguidas deitar-te. Assim o veneno atuará.
Depois dessas palavras, estendeu a Sócrates a taça, que a tomou das mãos
dele com toda a tranquilidade, sem o menor tremor nem alteração da cor ou das
feições. Mirando por baixo o homem, com aquele seu olhar de touro, perguntoulhe:
Que me dizes? E se eu fizesse uma libação com um pouquinho disto aqui? E
permitido ou não?
Só preparamos, Sócrates, respondeu, a quantidade que nos parece suficiente.
Compreendo, retrucou. Mas pelo menos é permitido, e até um dever, pedir
aos deuses que façam feliz a passagem deste mundo para o outro. É o que peço.
Prouvera que me atendam!
Depois de assim falar, levou a taça aos lábios e com toda a naturalidade, sem
vacilar um nada, bebeu até à última gota. Até esse momento, quase todos
tínhamos conseguido reter as lágrimas; porém quando o vimos beber e que havia
bebido tudo, ninguém mais aguentou. Eu também não me contive: chorei à
lágrima viva. Cobrindo a cabeça, lastimei o meu infortúnio; sim, não era por
desgraça que eu chorava, mas a minha própria sorte, por ver de que espécie de
amigo me veria privado. Critão levantou-se antes de mim, por não poder reter as
lágrimas. Apolodoro, que desde o começo não havia parado de chorar, pôs se a
urrar, comovendo seu pranto e lamentações até o íntimo todos os presentes, com
exceção do próprio Sócrates.
Que é isso, gente incompreensível? Perguntou. Mandei sair as mulheres, para
evitar esses exageros. Sempre soube que só se deve morrer com palavras de
bom agouro. Acalmai-vos! Sede homens!
Ouvindo-o falar dessa maneira, sentimo-nos envergonhados e paramos de
chorar. E ele, sem deixar de andar, ao sentir as pernas pesadas, deitou-se de
costas, como recomendara o homem do veneno. Este, a intervalos, apalpava-lhe
os pés e as pernas. Depois, apertando com mais força os pés, perguntou se sentia
alguma coisa. Respondeu que não. De seguida, sem deixar de comprimir- lhe a
perna, do artelho para cima, mostrou- nos que começava a ficar frio e a
enrijecer. Apalpando-o mais uma vez, declarou-nos que no momento em que
aquilo chegasse ao coração, ele partiria. Já se lhe tinha esfriado quase todo o
baixo-ventre, quando, descobrindo o rosto - pois o havia tapado antes - disse, e
foram suas últimas palavras: Critão, exclamou, devemos um galo a Asclépio.
Não te esqueças de saldar essa dívida!
Assim farei, respondeu Critão, vê se queres dizer mais alguma coisa.
A essa pergunta, já não respondeu. Decorrido mais algum tempo, deu um
estremeção. O homem o descobriu; tinha o olhar parado. Percebendo isso, Critão
fechou-lhe os olhos e a boca.
Tal foi o fim do nosso amigo, Equécrates, do homem, podemos afirmá-lo,
que entre todos os que nos foi dado conhecer, era o melhor e também o mais
sábio e mais justo.
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